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Um ano após a primeira morte na China, a fonte do coronavírus ainda é um enigma

É o quebra-cabeças científico mais urgente do mundo, mas os especialistas alertam que talvez nunca haja respostas conclusivas sobre a origem do coronavírus, depois de um esforço na investigação a ser marcado, desde o início, pela desordem, sigilo chinês e rancor internacional.

O dia 11 de janeiro marca a primeira morte por Covid-19 na China, um homem de 61 anos que frequentava regularmente o agora famoso mercado de Wuhan.

Quase dois milhões de mortes depois, a pandemia está descontrolada em grande parte do mundo, com dezenas de milhões de doentes, uma economia global pulverizada e várias recriminações entre as nações.

No entanto, a China, que controlou amplamente a pandemia a nível nacional, ainda está a bloquear as tentativas independentes de rastrear as origens do vírus e a questão central de como a doença passou dos animais aos humanos.

Há pouca disputa de que o vírus que colocou o mundo de joelhos teve o seu primeiro surto conhecido no final de 2019, num mercado da cidade chinesa de Wuhan, onde a vida selvagem era vendida como alimento, e acredita-se que o vírus tenha mutado numa espécie indeterminada de morcego.

Mas o rasto termina por aí, nublado por uma confusão de pistas subsequentes que sugerem que as suas origens podem ser anteriores a Wuhan, bem como às teorias da conspiração – ampliadas pelo presidente cessante dos EUA, Donald Trump – de que o vírus teve origem num laboratório de Wuhan.

Estabelecer a fonte é vital para extinguir futuros surtos de forma precoce, dizem os virologistas, fornecendo pistas que podem orientar as decisões políticas sobre o abate de populações animais, quarentena de pessoas afetadas ou limitar a caça de animais selvagens e outras interações entre humanos e animais.

“Se pudermos identificar o porquê de (os vírus) continuarem a surgir, podemos reduzir esses fatores subjacentes”, disse Peter Daszak, presidente da EcoHealth Alliance, uma ONG global focada na prevenção de doenças infecciosas.

Dúvidas sobre o mercado de Wuhan

Mercado de Wuhan/AFP

A China foi alvo de muitos elogios por relatar o vírus e liberar a sua sequência de genes em tempo hábil, em comparação com a cobertura do surto de SARS de 2002-03.

Mas também houve segredos e mudanças nas histórias.

As autoridades de Wuhan inicialmente tentaram encobrir o surto e depois passaram semanas preciosas a negar a transmissão de pessoa para pessoa.

Logo no início, as autoridades chinesas declararam categoricamente que o surto começou no Huanan Seafood Market, em Wuhan.

Mas dados chineses em janeiro de 2020 mostraram que vários dos primeiros casos não tinham ligações conhecidas com o mercado agora fechado, sugerindo uma fonte noutro lugar.

A história da China mudou novamente em março passado, quando o principal funcionário do controlo de doenças chinês, Gao Fu, disse que o mercado não era a fonte, mas uma “vítima”, um lugar onde o patógeno foi meramente amplificado.

Mas a China não conseguiu conectar publicamente nenhum ponto, divulgando poucas informações sobre amostras de animais e ambientais recolhidas no mercado, que poderiam ajudar os investigadores, dizem os especialistas.

Além disso, manteve especialistas estrangeiros à distância, com uma missão planeada por detetives de vírus da Organização Mundial de Saúde (OMS) agora no limbo, depois da China negar a entrada.

No sábado, uma importante autoridade de saúde chinesa disse que o país estava “pronto” para a equipa da OMS, composta por dez pessoas, abrindo as portas para uma visita a Wuhan.

No entanto, “o tempo específico está a ser determinado”, disse aos repórteres o vice-ministro da Comissão Nacional de Saúde, Zeng Yixin.

Caso arquivado

O que os cientistas poderão ver ou esperar encontrar, um ano depois, também é um ponto de interrogação. Especialistas dizem que as autoridades podem ter destruído ou apagado evidências cruciais numa resposta inicial ao pânico.

“Todo o surto segue o mesmo caminho. É caótico e disfuncional”, disse Daszak.

“Eles não fizeram um bom trabalho na investigação animal desde o início”, acrescentou.

“Em alguns aspetos, foram bastante abertos, em outros, menos.”

As razões para o sigilo da China não são claras, mas o Partido Comunista no poder tem um histórico de suprimir informações politicamente prejudiciais.

Denunciantes e repórteres que partilharam detalhes das primeiras semanas terríveis do vírus na Internet foram silenciados ou presos.

Pequim pode querer esconder lapsos regulatórios ou de investigação para evitar constrangimento doméstico, disse Daniel Lucey, epidemiologista da Universidade de Georgetown, que acompanha de perto surtos globais.

O mercado de Wuhan pode nem ser o problema, acrescenta Lucey.

Daniel observa que o vírus já se estava a espalhar rapidamente em Wuhan a dezembro de 2019, indicando que estava em circulação muito antes.

Isso porque pode levar meses ou até anos para que um vírus desenvolva as mutações necessárias para se tornar altamente contagioso entre os humanos.

A teoria da origem do mercado “simplesmente não é plausível”, disse Lucey.

“Ocorreu naturalmente e deve ter sido muitos meses antes, talvez um ano, talvez mais de um ano.”

Aumentando a dúvida, em dezembro a China disse que o número de casos de coronavírus a circular em Wuhan pode ter sido 10 vezes maior no início da epidemia do que o revelado por números oficiais na época.

O rasto agora esfriou, com as pistas subsequentes a apenas aumentar a confusão, incluindo descobertas de que o vírus pode ter existido na Europa e no Brasil antes do surto de Wuhan, sugestões não confirmadas que a China aproveitou para desviar a culpa.

‘Nunca saberemos com certeza’

Daszak continua esperançoso de que a fonte possa ser encontrada, especialmente depois da derrota do presidente dos EUA, Donald Trump, nas eleições, dando lugar a um novo protagonista, Joe Biden.

O presidente da EcoHealth Alliance culpa Trump por acabar com a cooperação com a China ao politizar o vírus – colocando o rótulo de “vírus da China” – e pela sua administração promover a teoria da conspiração de que a China o criou num laboratório, algo que os cientistas rejeitam.

“Estou confiante de que eventualmente descobriremos de que espécie de morcego veio e o caminho provável”, disse Daszak.

Outros têm menos certeza.

Diana Bell, especialista em doenças da vida selvagem na Universidade de East Anglia, que estudou o vírus SARS, Ebola e outros patógenos, disse que focar numa espécie de origem específica é um equívoco.

A especialista diz que a ameaça global já foi exposta: um comércio global de vida selvagem que promove uma “mistura combustível” de espécies traficadas, criando surtos de doenças.

“(A espécie) na verdade não importa. Não precisamos de saber a fonte, só precisamos de parar com essa mistura de animais nos mercados”, disse.

“Precisamos de parar o comércio de animais selvagens para consumo humano.”

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Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

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