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Espremer (3)

Miguel Verissimo*

No sentido de encontrar as lógicas orientadoras para a transição do modelo de desenvolvimento que estamos a viver; na opinião Espremer 2 foquei-me na etapa – projeto/produção, e como em ciclos de forte inovação, se cria a ilusão de que a ciência e a tecnologia são capazes de sustentar um crescimento em escala e intensidade, separado da natureza.

Nesses ciclos de relativo conforto e aceleração económica, a natureza humana, criativa e performativa, separa-se da natureza selvagem, do corpo, e de um passado de escassez e morte. E, é essa separação – mente/corpo, futuro/passado, que acaba por catalisar os ciclos de crescimento até à rotura, e moldar as bases do modelo ideológico que vai gerir a etapa seguinte do projeto humano.

Na reflexão Espremer 3, seguindo o ciclo-de-vida da nossa ação transformadora, vou-me focar no papel do cidadão – utilizador/consumidor, e refletir sobre a forma como se apropria culturalmente duma nova ideia de progresso, que foi estruturada, científica, política e economicamente com antecedência, para conduzir a sociedade à luz duma nova utopia.

A Transição Ecológica em que estamos envolvidos, sendo um anunciado retorno do corpo à natureza, funda-se na mesma “fé no progresso” do humanismo antropocêntrico. Mas, essa fé no progresso é uma abstração, herdada do compromisso humanista com a religião, que se materializou depois, política e ideologicamente nos ISMOS do séc.XX.

Assim, a razão antropocêntrica humanista surge da necessidade de criar um transcendente, capaz de justificar a especificidade da espécie humana, e legitimar o seu direito sobre a posse dos recursos naturais. E, foi a possibilidade dessa “supranatura” capaz de controlar o meio ambiente em que habita, que concebeu na cidade industrial, o organismo central desse ecossistema transformador, em que os cidadãos controlados pela ilusão de poder, teriam como recompensa o conforto de uma parte justa do fluxo de riqueza.

Mas, a concentração urbana, industrial e pós industrial, a escalas insustentáveis, que estimula o consumo, garante o crescimento económico e a estabilidade dos fluxos de riqueza para a cidade, não é uma experiência exclusiva da contemporaneidade. É aparentemente uma consequência das regras de um jogo recorrente e esquecido, comum em ciclos passados. A matriz desse jogo é a esperança no livre-arbítrio e a promessa de liberdade pela riqueza, na ilusão de que o cidadão controla o seu próprio destino. Mas, tendo em conta que o projeto humano é no essencial a repetição de ciclos formalmente idênticos, o que impacta o ciclo atual e faz soar os alarmes, é a escala e o lastro de destruição, tendo em conta que poucas sociedades atingiram o patamar sagrado da salvação humanista.

Desde Darwin, a ciência tem comprovado que o homem, embora armado de invenção e ferramentas, é uma criatura biológicamente igual às outras, submetida às mesmas regras de ciclo-de-vida, de competição e evolução, inserida em realidades complexas que não sabe controlar. Daí que a ideia da evolução industrial, de um cidadão livre dos determinismos da natureza, tenha resultado, numa primeira etapa, na doutrinação da Ciência, pela defesa da exclusividade genética do homem (sobretudo ocidental); dando forma àquele que foi o compromisso humanista com a religião, de preencher o vazio espiritual, com uma fé no progresso, para se poder legitimar culturalmente junto da sociedade. E, essa fé no progresso e no crescimento infinito passa a ser o viveiro da esperança, a promessa de riqueza, o refúgio do medo e o álibi dos excessos, assimilando a ideia cristã de que, “a salvação está ao alcance de todos”, desde que se acredite.

Hoje, no vazio da crise e advento da escassez, essa ideologização da ciência reacende-se perigosamente como uma “religiosidade secular”, em que a pureza epistemológica da ciência a transforma num objeto de confrontação política.

E, no conflito da conspiração “pós-verdade”, essa batalha tem mesmo os seus campos bipolares: – Na oposição cidade – campo da “ultramoderna” sociedade americana; no populismo europeu; no racismo, ou no véu ideológico chinês.

Há dias deliciei-me com a tirada numa rede social, que dizia: – “A Ciência está-se nas tintas para aquilo em que acreditas”…

Mas, o progresso humano não é mais que um laboratório de “ciências humanas” falhadas.

Resta-nos nesta fase da reconfiguração ideológica que vai alinhar a sociedade segundo as regras de um novo modelo de desenvolvimento, de equacionar todos os modelos ideológicos passados, partindo do princípio de que vamos escolher um novo modelo de gestão, e não a estrutura desse novo ciclo. Assim, do biocentrismo dos modelos de gestão ideológica das densas sociedades asiáticas, à revisão do modelo humanista ocidental, tudo deveria ser discutido.

O passo recente de dar personalidade jurídica à natureza ao se criar o Crime de Ecocidio pelo Ministério da Transição Ecológica de França, ou, a causa da Casa Comum da Humanidade, baseada no conceito Condomínio Terra de Paulo Magalhães em 2007 (1), podem dar um contributo para essa discussão.

(1) – A Terra o nosso Condomínio:

Paulo Magalhães_TEDxGuimarães 2013:

(Paulo Magalhães é jurista e investigador Cesnova/FCSH/Univ.Nova de Lisboa, onde também é doutorando em Ecologia Humana. Em 2007, publica “O Condomínio da Terra: das Alterações Climáticas a uma Nova Concepção Jurídica do Planeta” onde se propõe uma gestão da Casa Comum da Humanidade baseada na experiência jurídica da propriedade condominial.)

*Arquiteto

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Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

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