Conto de Natal

por Guilherme Rego
João MeloJoão Melo*

“Em Espanha todos os 22 jogadores fazem o sinal da cruz antes de entrarem no campo. Se funcionasse, todos os jogos acabavam empatados”Johan Cruyff

Notícia da última semana: José Brito, nascido e crescido em Cabo Verde, desenvolveu uma doença grave, necessitando de receber um transplante de medula óssea. Ao abrigo de um protocolo veio há quase duas décadas tratar-se a Portugal. Teve sorte. Chegou na época em que os africanos e ucranianos entravam no nosso país para construir estádios, basílicas, e infraestruturas, ou acartar com botijas de gás, sendo recebidos com um sorridente “bem vindo”, presenteados com um chocolatinho Regina, e uma T-Shirt estampada com a frase “I (um coração) Portugal”. Hoje correriam o risco de serem mortos à pancada por australopitecos numa caverna do aeroporto. José curou-se e passou a viver em Lisboa onde constituiu família. Um dia ao passear pela zona de Belém viu um miúdo a chorar; o seu skate tinha caído ao rio, os pais ao lado não faziam nada. Desceu a rampa, recuperou o skate, ficou ensopado mas feliz porque o menino também ficara feliz. Recentemente José saiu de casa com o filho. Andaram, pararam num café, e seguiram para mirar o rio no Cais das Colunas. Repararam num sexagenário falando sozinho que de repente se lançou à água… Ao fim de algum tempo perceberam que o homem boiava imóvel de barriga para baixo. José atirou-se e, nem sabe como, teve forças para pegar nele, trazê-lo de volta, depositando-o nas escadas; virou-o de lado para expelir a água dos pulmões, e fez-lhe uma massagem cardíaca. Os bombeiros apareceram dez minutos mais tarde, transportando-o para o hospital onde se encontra livre de perigo. Isto ocorreu perante a atitude inoperante de uma dúzia de pessoas que inclusivamente o aconselharam a não fazer nada. Salvara-se 16 anos antes por uma doação anónima, pagou-se salvando a vida a um anónimo.

O que o herói e o filho nem suspeitam é que tudo foi um propósito do Senhor cogitado com muita antecedência, na verdade desde que Ele criou este universo há 13,8 mil milhões de anos. Sabendo que José nunca sairia de Cabo Verde, no início da eternidade determinou espetar-lhe com uma doença grave. Logo seria obrigado a deslocar-se a Lisboa para se curar. Talvez me esteja a redizer mas nunca é demais salientar a Sua omnisciência: sabendo também que José seria pescador, habituado a ver o mar em Cabo Verde, o Senhor programou a queda de um meteorito há 65 milhões de anos, transformando a morfologia do planeta de modo a fazer nascer um rio no centro da península que desaguaria no oceano Atlântico. Sim, extinguiu os dinossauros, mas não sejamos ingénuos: nenhum plano se realiza sem danos colaterais. Cônscio da Sua obra, os humanos tendem a agrupar-se à beira dos cursos de água, milhões de anos passados, naturalmente, Lisboa foi fundada na foz do Tejo. Ulteriormente o reino de Portugal formou-se no eixo vertical da península em conflito com os vizinhos para que os portugueses não tivessem outra hipótese de ir a algum lado que não fosse por mar. A coisa esteve tremida a 14 de Agosto de 1385 quando espanhóis e portugueses, dois povos que rezavam a Si (estou a falar de Deus “Deus” e não dos Seus heterónimos venerados por outras confissões) Lhe pediram a vitória, numa manifestação do comportamento observado pela primeira vez por Johan Cruyff (famoso futebolista holandês), e ao qual sugeria que dessem o nome de “síndrome Cruyff”. Está nos livros, Portugal venceu e D. João, sem dúvidas sobre quem lhe proporcionara o triunfo (o árbitro, como sempre no futebol português) mandou erigir o Mosteiro de Sta Maria da Batalha em honra da mãe do Seu filho. Vai daí, ó coincidência das coincidências (pois…), foi precisamente este rei que iniciou a expansão ultramarina. Séculos de chicotada e exploração colonial depois, os portugueses meteram a mão na consciência e estabeleceram um protocolo que permite a cidadãos dos PALOP receber assistência médica em Portugal. Um dia ao percorrer a zona da Torre de Belém (já nem vou sugerir que meditem sobre o significado), José vê uma criança a chorar porque o seu skate caíra ao rio. Os pais não faziam nada (eram portugueses, portanto) além de gritarem com o miúdo por ser descuidado, sobretudo após terem avisado tantas vezes “olha que cais ao cais” e “se isso for parar lá em baixo não te compro outro”, desconhecedores de que o episódio teve a mão do Senhor. Não, não foi Ele que empurrou o skate, não estejam já a pôr intenções onde elas não existem. O que se passou foi que o Senhor ligou ao diabo (quantatelepaticaholograficamente) e perguntou-lhe se queria divertir-se, Ele permitir-lhe-ia UMA travessura. O diabo, claro, aceitou e empurrou o skate feliz da vida, julgando que tinha feito merda e deixado todos infelizes. Mas José atirou-se ao rio e apanhou-o. Estava consumado o tirocínio que o Senhor projectara para ele, e ainda mofara com o capeta. No dia do salvamento José Brito saiu de casa a pé com o filho. Recordam-se de eles terem parado num café antes de se dirigirem ao Cais das Colunas? Pois bem, sucedeu que o diabo (que tem a mania que é esperto) estava lixado por há sete segundos (na eternidade um segundo corresponde a um ano na Terra) ter sido sacaneado pelo Senhor, e então soprou ao ouvido de um taxista “acelera, acelera” num semáforo que acabara de mudar para vermelho. Todavia o filho de José foi acometido por uma súbita vontade de fazer xixi (calculem quem lhe pôs esse intuito no corpo) levando José a volver atrás e a não atravessar a passadeira onde seria atropelado pelo táxi. Dirigiram-se ao café e o filho foi à casa de banho ao mesmo tempo que ele tomava uma bica, elevando-lhe os níveis de atenção pelo efeito da cafeína. Toma demónio, 2-0 e com requintes de bondade. Finalmente o bom José passa a pé pela estátua de D. José a cavalo, aproxima-se do cais, depara-se com o tal idoso a murmurar antes de mergulhar, ficando a boiar de cabeça para baixo, enquanto os presentes não faziam nada (eram portugueses, portanto), além de gritarem “deixem o homem em paz” e “não lhe toquem que pode ser pior, chamem uma ambulância”. O vago “chamem” disparado para o ar não satisfez José. Ex-pescador e ex-salvador de bens, acolitado pelo estimulante importado da sua terra (notem a ironia) decidiu não esperar por ninguém e tornar-se num alfaqueque de vidas. Atirou-se à água, resgatou o infeliz, efectuando ainda manobras de respiração, ao passo que a multidão só assistia; pensariam que o homem se mandara por desejo do Senhor? Estão mesmo a ver que não foi assim, certo? Certo. Foi o Diabo que soprou ao ouvido do homem “atira-t’ó mar e diz que t’empurrarem”. “Mais uma batata, mais uma batata: goooooolo! Cantem comigo: Senhor 3, diabo zeero!” O demónio estava a levar uma cabazada mas isto não ficaria por aqui. Meio minuto antes, ou seja há 31 anos, Marcelo Rebelo de Sousa dispusera-se a vender a alma, desejava a todo o custo ser presidente da câmara de Lisboa. O diabo propôs-lhe que fizesse uma campanha diabólica, guiando táxis, atirando-se ao Tejo, à época bastante poluído, e ele… aceitou! O Marcelo presta-se a tudo e as ideias do diabo também são um bocadinho repetitivas, convenhamos. Não ganhou (imaginem porquê, sim 4-0) acabando por salvar a alma. O plano do Senhor era outro, envolvia a humilhação final do eterno perdedor. Como presidente, mas da República, Marcelo tomou conhecimento do acto corajoso de José Brito pela comunicação social (where else George?) e sabendo bem o que custa engolir pirolitos do Tejo (esteve uma semana de diarreia) elogiou-o enfaticamente através do site oficial da presidência. José já era o herói do filho, pois daqui em diante ascenderia ao estatuto de super-herói nacional, e não é qualquer um que se pode gabar de ser um genuíno Aquaman. “Cinco, Diabo, cinco a zero em meio minuto, foste enganado em todas”. Por seu lado o homem que se atirou à água seria um escritor, frustrado na tentativa de desaparecer discretamente com alarido. Se ele ainda não estiver suficientemente envergonhado para reprisar o drama, agora no cenário do hospital de S.José, estou certo que o Senhor oferecerá uma apendicite aguda ao bom José para o colocar no mesmo quarto do outro e impedi-lo de cortar os pulsos com a agulha do soro. 

Moral da história: o diabo nunca aprende, o Cruyff não sabia do que falava (nem eu), o bem triunfou, e mais uma vez o desígnio do Senhor cumpriu-se. Feliz Natal.

*Músico e embaixador Plataforma

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