Projectar o futuro

por Guilherme Rego
João MeloJoão Melo*

Um significativo número de internautas considera suspeita a capacidade de alguns produtos de entretenimento serem capazes de fazer previsões que se mostram correctas; o mais falado refere-se à série de animação “Os Simpsons”. Não nego a possibilidade de existir um propósito obscuro atrás do proposto nas séries e filmes, mas cada vez mais constato que a razão para tanta surpresa se encontra associada ao desconhecimento de um simples processo chamado “pensar”. Quando aqueles que não estão habituados a processar o mundo além das aparências são postos perante uma “revelação”, imagino que lhes cause uma sensação semelhante a tropeçar na pedra filosofal e bater com a cabeça na bigorna do conhecimento. Parece magia. Numa economia progressivamente terciarizada vai-se perdendo a ligação à origem, e um dia conheci (isto é real) um indivíduo nativo de meio urbano que julgava o arroz ser um tipo de massa, como o esparguete, cotovelos, fusilli… É incrível, porém este tipo de pessoa replica-se aos milhões, vivendo na permanente distracção, respondendo de modo sensitivo a qualquer tipo de estímulo, sem notar que houve um processo conducente a um desfecho, e que provavelmente a única coisa que as “tenebrosas corporações” querem dele é que reaja impulsivamente, quase sempre para consumir, sem pensar, salivando qual cão de Pavlov ao toque da campainha. No século XXI já se sabe que a magia não existe, logo estas pessoas, similares a robots orgânicos, tendem a concluir que as previsões se fazem através de truques, batota, qualquer coisa menos clara.

Nada se cria a partir do nada. No caso dos artistas, ainda que a criação se gere a um nível inconsciente, ela parte da cognição de dados apreendidos. Sendo eu um vulgar criador revelo aqui que as minhas extrapolações se baseiam em genéricos conhecimentos históricos, psicológicos, e científicos acessíveis a qualquer um. Não há nada de transcendente, algumas coisas concretizam-se, muitas não, e maior fosse a minha proficiência nessas áreas, mais acuradas seriam as supostas previsões, um computador hoje produ-las facilmente. Depois dá-se atenção ao que se realiza, enquanto o que falha dilui-se na bruma do esquecimento. Júlio Verne, célebre visionário, possuía sólidos alicerces científicos característicos do seu tempo. Aplicando-os de forma criativa à escrita, conjecturou cenários que se mostraram sobremaneira certeiros. No livro “Da Terra à Lua” editado em 1865, propôs o lançamento de 3 astronautas dentro de uma espécie de bala oca lançada por um canhão gigante, atingindo velocidade suficiente para vencer a gravidade. Segundo ele, o ponto de partida deveria ser assaz árido e rochoso para suportar uma explosão deste género, indicando coordenadas geográficas espantosamente próximas do Cabo Canaveral. Conhecedor de balística, velocidade de escape, e da distância da Terra à Lua, sugeriu que a viagem far-se-ia em 4 dias, o mesmo que a Apollo 11 demorou. No regresso a cápsula com os astronautas amararia no Oceano Pacífico… Nem vou lembrar a razão do porquê da viagem porque a semelhança com a realidade um século depois chega a ser assustadora, é uma embaraçosa repetição de padrões humanos. Se o avanço científico tivesse queimado etapas, o modelo tecnológico proposto por Verne, um disparo de canhão, seria caricato, como será algures no futuro. Todavia, seguindo-se a via evolutiva normal a prognose bateu certo. Escreveu um outro livro ainda mais extraordinário lançado postumamente em 1994. Chama-se “Paris no século XX”, antevendo um mundo inimaginável para a época: arranha-céus, automóveis, comboios de alta velocidade, armas controladas remotamente, chamadas de vídeo, computadores, internet, etc, que trazem repercussões sociais análogas às actuais. O seu editor recusou publicá-lo alegando que lhe poderia estragar a carreira, dizendo-lhe “ainda que você fosse um profeta, hoje ninguém acreditaria nessa profecia, simplesmente não se interessariam por ela”. Verne seguiu o seu conselho, guardou o manuscrito num cofre, sendo descoberto por um bisneto em 1989.  

O editor de Júlio Verne tinha razão. O seu objectivo era vender livros, protegendo a reputação do amigo. Se uma ideia estiver tão distante de tocar a sensibilidade do grande público, este desinteressa-se. Agora já há meios sofisticados para captar o interesse pelo absurdo. Uma pessoa ou organização munida de suficiente poder económico para o divulgar, seja ele fictício ou não, torna-o real. A “Guerra dos Mundos” de H.G. Welles transmitida na rádio em 1938 é o primeiro notável exemplo. Konrad Lorenz, ganhou o prémio Nobel da medicina em 1973 pelos seus estudos sobre o comportamento animal; segundo ele, “o medo é um detonador que desencadeia a salvação”. O medo tem sido um tema recorrente na humanidade, o medo de morrer, medo do inferno, doenças, inimigos, alienígenas, desemprego, fome… Queremos sobreviver. Antes da pandemia monopolizar as nossas preocupações, 14% dos americanos acreditavam num apocalipse zombie e tinham planos de contingência para o enfrentar, pasme-se! 1/6 dos americanos não acredita na esfericidade da Terra, 7% dos brasileiros igual, e se esta ideia for difundida por igrejas evangélicas, 30% dos brasileiros passará a crer numa Terra plana. Portanto meus amigos, o que a internet veio provar é que a disponibilidade da informação raramente abre o pensamento, antes servindo para reforçar convicções; essa é a perversidade da informação. E as convicções são-nos doutrinadas desde a nascença, algumas substituem-se por outras, não interessa o quê, todas servem o propósito de nos mantermos afastados de pensar, no fundo de desenvolvermos a capacidade de projectar o futuro por nós próprios.

*Músico e embaixador do PLATAFORMA

Pode também interessar

Contate-nos

Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

Plataforma Studio

Newsletter

Subscreva a Newsletter Plataforma para se manter a par de tudo!