Um País, Dois Critérios

por Filipa Rodrigues
Catarina Brites Soares

Pequim excluiu os residentes estrangeiros de Macau de entrarem no Continente quando abriu as fronteiras aos locais. Bernard Peres e João Pegado contam como a descriminação lhes complicou a vida. A advogada Helena Valente explica porque a diferenciação é legal, mas injusta.

Bernard Peres vive em Macau há 25 anos, onde é residente permanente. Em 2000, criou a Premium & Collectibles Trading, com sede na região, mas com parte da produção no Continente, onde não vai desde fevereiro. 

A indústria de fabrico de miniaturas de motas, aviões, soldadinhos de chumbo e carros – com clientes como a Jaguar, Aston Martin e Rolls-Royce – ressente-se com a ausência.

João Pegado também é residente permanente. Este ano, a mulher chinesa teria direito ao Bilhete de Identidade de Residente (BIR). O processo está suspenso porque o marido não pode ir à China, onde o casal também tem casa. 

Os casos resumem os obstáculos que estrangeiros, ainda que residentes, enfrentam e a injustiça para a qual não encontram motivo. Aparentemente, a China é um país e Macau faz parte dele. 

“Visto que a política externa de cada país está dentro da sua autonomia, parece-me legal que a República Popular da China (RPC) se reserve o direito de admissão de pessoas dentro da respetiva área de jurisdição”, afirma a advogada Helena Valente. 

“No que concerne à justiça da decisão, aí a minha resposta é diferente. Enquanto residentes de Macau, somos todos residentes na RPC, pelo que a decisão é de todo injusta”, defende.

A advogada lembra que os estrangeiros que vivem no país estão a ser tratados como os nacionais. “Não têm quaisquer restrições. Uma pessoa, independentemente da nacionalidade, que resida em Xangai pode ir de férias para Pequim. Qual é a diferença entre eles e nós? A ser apontada alguma, devia ser no sentido de nos ser concedida mais liberdade de circulação”, reforça.

Sem saída

O incómodo é geral, desde logo pela impossibilidade de se sair de Macau. Mas, há limitações mais graves que a de viajar. 

Bernard Peres está há quase nove meses sem visitar a fábrica que tem em Dongguan, onde ia todas as semanas, pelo menos uma vez, em veículos próprios com dupla matrícula. “Os residentes permanentes de etnia chinesa podem deslocar-se e nós estamos aqui bloqueados. Não faz qualquer sentido”, critica o francês. 

“Não entendemos e não vimos da parte de Macau nenhuma vontade em tentar falar com a China e procurar resolver isto”, adianta.

Foram várias as tentativas junto de entidades locais e nacionais, mas as informações nunca foram muito claras. Na última investida junto das autoridades do Continente em Macau disseram-lhe que talvez houvesse uma possibilidade, mas que implicaria fazer um pedido especial e um visto cada vez que quisesse atravessar a fronteira. 

“Ir lá uma vez não nos resolve o problema. Precisamos de ir com frequência e de retomar o trabalho normalmente”, explica o fundador da empresa, referindo-se também aos dois filhos que trabalham consigo e se deslocavam à cidade com a mesma regularidade. 

“A China decidiu que não quer estrangeiros e que, apesar de sermos residentes somos de segunda categoria. É muito difícil falar com eles. As autoridades de Macau deviam ter em conta esta situação e pressionar a China. Mas somos poucos e continuamos assim”, lamenta o empresário no ramo desde 76, e com escritórios em França, Shenzhen, além da segunda fábrica no Bangladesh, com 3.900 funcionários, e onde também está impedido de ir. Mostra-se contudo mais indignado com a interdição de visitar as instalações na China.

A gestão à distância melhorou desde que os funcionários da fábrica chinesa – com 450 trabalhadores – podem vir a Macau, mas o impacto da pandemia na atividade exige que esteja presente. 

“O negócio não está fácil. O nosso ramo foi mundialmente afetado. Não ter possibilidade de ir lá, ter reuniões com engenheiros e funcionários, dificulta ainda mais”, afirma. “É difícil, sobretudo porque não vemos uma luz ao fundo do túnel”, diz.

A frustração repete-se com João Pegado. Comprou casa na Ilha da Montanha e a mulher está pendente que possa ir à China para ser residente. 

O pedido para obter o direito foi aprovado em março, depois de cinco anos – período que por norma demora o processo para um cidadão chinês, sujeito a um sistema de pontos, distinto dos restantes habitantes e que depende do aval das autoridades nacionais. “Foi-nos dito que poderíamos ir à Migração dar entrada para o BIR. A questão é que tenho sempre de ir à China para o processo decorrer”, assinala.

Já estivemos cinco anos à espera e parece-me que vamos estar mais um”, desabafa.

Os casamentos por conveniência tornaram o processo mais rígido. É requisito obrigatório que o cônjuge – através do qual se obtém o direito – assine documentos e que o casal faça uma entrevista presencial. Neste caso, João Pegado teria de ir a Zhuhai porque a mulher pertence à província de Guangdong.

“Preocupa-me pelo que estamos a viver em Macau, especialmente no que respeita aos trabalhadores não-residentes em termos de trabalho. Pela insegurança que é o mercado hoje para os blue card, receio que não ter o BIR possa ser prejudicial”, realça.

Às voltas

À semelhança de Bernard Peres, também João Pegado bateu a todas as portas. Viu-lhe negado os pedidos para que a entrevista fosse por videochamada e a assinatura por procuração ou autenticada por um notário no território. 

Junto das autoridades do Continente na região tentou perceber se podia abrir-se uma exceção. “Mas foi-me dito que não. Nem eu, nem a minha mulher temos familiares lá que precisem de ajuda urgente ou em fim de vida, casos em que poderia ser concedida”.

Voltou a insistir quando Pequim abriu as fronteiras para os residentes, em junho, mas a resposta repetiu-se. “Mesmo explicando que tinha lá casa, disseram-me que como temos trabalho em Macau não há uma necessidade”, refere.

O casal ia mudar-se em julho para a Ilha da Montanha, onde comprou habitação. “Já tínhamos falado com a senhoria da casa onde vivíamos há mais de cinco anos para terminar o contrato e nos podermos mudar sem termos dois encargos, uma renda aqui e o empréstimo ao banco”, explica.

Direitos e Deveres

A Lei Básica, no artigo 25º, é clara: “Os residentes de Macau são iguais perante a lei, sem discriminação em razão de nacionalidade, ascendência, raça, sexo, língua, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução e situação económica ou condição social”.

Helena Valente ressalva que a política de entrada e saída de estrangeiros no Interior da China é uma questão de relações externas e segurança, as quais são de regulação soberana nacional. 

O que permite a entrada das pessoas de Macau na RPC, salienta, é a dupla qualidade de residentes de Macau e a nacionalidade chinesa. “Ou seja, só os portadores do chamado Salvo Conduto (ڈv‮٦‬mأز) podem entrar e para isso é necessário ter nacionalidade chinesa. Assim, penso que não será uma diferenciação ao nível dos residentes de Macau, mas sim ao nível dos nacionais/não nacionais “, advoga.

Em Macau, contudo, a entrada de estrangeiros não residentes vai passar a ser possível a partir de terça-feira, 1 de dezembro. Desde que tenham permanecido nos 14 dias anteriores no Interior da China, a entrada é permitida em casos específicos como a reunião familiar ou motivos profissionais.

Questionada se não devia haver reciprocidade, a advogada vinca que é um princípio que deve ser basilar também nas relações nacionais. 

“Acresce que carece de sentido, e até de fundamentação, o facto de nós, residentes de Macau, residentes do Um País, mas no “Segundo” Sistema, sermos preteridos em função dos estrangeiros – em bom rigor, passar as Portas do Cerco não significa entrar num outro país, significa entrar numa outra região do mesmo país”, diz.

Ao Plataforma, o Gabinete de Comunicação Social (GCS) pouco esclarece e limita-se a dizer que o Governo tem seguido as exigências do país.

Sobre se há negociações e previsões para que a medida abranja todos os residentes, o organismo afirma que “o Governo continuará a comunicar com as autoridades nacionais”.

Livre de casos locais há quase 250 dias, Macau ainda só suspendeu as restrições nas fronteiras com a China continental. Em agosto, o Chefe do Executivo defendeu que o cenário ideal para se poder falar num alívio nas entradas seria os territórios conseguirem estar 130 dias sem casos. Taiwan está há mais de 200, mas o Executivo afasta a possibilidade das “bolhas de viagem”. “Não existem negociações nesse sentido”, frisa o GCS.

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