“Em Portugal a mutilação genital realiza-se em secretismo”

por Gonçalo Lopes
Gonçalo Lopes

O primeiro caso de mutilação genital em Portugal começou a ser julgado há uma semana. Esta é uma prática bastante comum em alguns países africanos e no médio oriente. Contudo, por todo o mundo há casos e a luta é constante para que este ato deixe de ser uma realidade. Em entrevista ao Plataforma, a ADDHU – Associação de Defesa dos Direitos Humanos, uma Organização Não Governamental (ONG) para o Desenvolvimento, traçou um pouco o panorama sobre este ritual, sendo que a esperança numa resolução rápida é grande. Aliás, há mesmo uma data para que a erradicação da MGF possa ser uma realidade, concretamente dentro de 10 anos, em 2030. Contudo, ainda há muito trabalho pela frente para que isso seja possível.

O que é a mutilação genital feminina?

A Mutilação genital feminina (MGF), chamada também de circuncisão feminina, é a remoção ritualista de parte ou de todos os órgãos sexuais externos femininos. Geralmente executada de forma tradicional por um membro da comunidade, avó ou tia, com a utilização de uma lâmina de corte, com ou sem anestesia, a MGF concentra-se em vários países africanos, Indonésia, Iémen e no Curdistão iraquiano, sendo também praticada em vários outros locais na Ásia, no Médio Oriente e em comunidades expatriadas em todo o mundo. Pensa-se que após tanta luta para acabar com esta prática, ainda haverá cerca de 29 países que a praticam. A maioria das meninas são mutiladas entre os 4 e os 15 anos de idade. Em certos países a idade pode ir até aos 40 anos. As origens da MGF são desconhecidas. Alguns estudiosos afirmam que terá começado no Reino de Cuxe (actual Sudão) no 1º ou 2º milênio a.C. e sugere que esta prática teria começado num contexto de poliginia para garantir a paternidade das crianças. Também poderá ter começado no Antigo Egipto. Um papiro grego datado de 163 a.C. mencionou a operação realizada em meninas em Memphis, no Egito, na época em que receberam seus dotes, apoiando teorias de que a MGF se praticava como uma forma de iniciação de mulheres jovens. Sem dúvida que esta prática tem raízes nas desigualdades de género, em tentativas de controlar a sexualidade da mulher e em ideias sobre pureza, modéstia e estética. É geralmente iniciada e executada por mulheres, que a vêem como motivo de honra e receiam que se não a realizarem a intervenção as filhas e netas ficarão expostas à exclusão social. No Quénia assistimos a casos de meninas cujos pais as protegeram e não autorizaram a prática da MGF e viram-se assim excluídos da comunidade.

Apesar de ser proibido, o brutal ritual da mutilação genital feminina continua a ser uma realidade. Que países, ainda assim, o praticam?

Esta realidade está fortemente e ainda, apesar de todos os esforços de agências e entidades governamentais para acabar com tal prática, enraizada em países muçulmanos sejam no Médio Oriente ou em Africa: O Sudão a Somália, Etiopia, Egipto, Médio Oriente em geral, Nigéria, República do Congo, Guiné, Indonésia…No Quénia, a situação foi praticamente controlada há cerca de cinco anos quando surgiram inúmeros novos casos de mortes de meninas causada pela prática da MGF. Várias detenções foram feitas e o governo queniano lançou uma forte ação em todo o país contra os agentes desta prática. Prática penalizada por lei há já mais de 30 anos, não há forma de assegurar que não seja ainda realizada por exemplo na região de Kissi ou na comunidade massai, mas casos de morte ou detenções por esta causa não têm sido reportados. A comunidade em Kissii com quem trabalhámos e formámos jovens para serem agentes no combate à MGF, deixou de realizar esta prática há já cerca de quatro anos.

esta prática tem raízes nas desigualdades de género, em tentativas de controlar a sexualidade da mulher e em ideias sobre pureza, modéstia e estética

Em termos estatísticos, os números dos atos que ainda hoje se praticam são assustadores?

A nosso ver sim , pois basta um caso desta prática para ser assustador. No entanto, os números de casos de MGF têm vindo a baixar enormemente, sobretudo em Africa, e hoje em dia, mesmo assim, considera-se que deve haver cerca de 140 000 meninas que foram submetidas à MGF em 2019.

O ano de 2030 é o apontado para um possível fim desta barbaridade. Por tudo o que vê, por tudo o que sabe, a ADDHU – Associação de Defesa dos Direitos Humanos, acredita que dentro então de 10 anos este ato poderá estar erradicado?

Acreditamos que em África poderá estar praticamente erradicado. Temos dúvidas quanto aos países muçulmanos dado o fechamento e o radicalismo das suas ideias e convicções. Mas queremos acreditar que se não estiver erradicado poderá estar no bom caminho.

Apresentação sobre a Mutilação Genital Feminina, nomeadamente no Quénia, em África, país onde a ADDHU luta diretamente contra a MGF.

Este ritual, além dos previstos problemas físicos, afeta também as mulheres em termos mentais ao longo da vida…

Os efeitos psicológicos e sobre a função sexual são devastadores senão irreversíveis. Há, no entanto, pouca informação de boa qualidade disponível sobre os efeitos psicológicos da MGF. Vários estudos concluíram que as mulheres com MGF sofrem de ansiedade, depressão e transtorno de stress pós-traumático. Sentimentos de humilhação, impotência, vergonha e traição familiar podem desenvolver-se quando essas mulheres deixam a cultura que pratica a MGF e descobrem que a sua condição não é a normal. Porém, e muitas vezes como observámos, por exemplo em Kisii, dentro da cultura que a pratica, poderão vê-la com orgulho, porque para si significa beleza, respeito pela tradição, religião, castidade e higiene.

A ADDHU – Associação de Defesa dos Direitos Humanos tem realizado um trabalho bastante elogiado por muitos, sobretudo no Quénia. Como têm chamado a atenção das pessoas para que estes progressos sejam uma realidade?

Como já referi, no caso da ADDHU os progressos foram excelentes na região onde trabalhámos, Kissii. O exemplo dado pela comunidade e a divulgação feita pode dar conta do progresso e que realmente a MGF pode ser completamente erradicada

Falando de Portugal e dos PALOP. O número de casos são preocupantes?

Existe MGF em Portugal sobretudo na comunidade guineense e quiçá na comunidade indiana e islâmica. No caso dos PALOP o meu conhecimento não é profundo. No entanto, sei que na Guiné continuam a proceder à prática e que até em Portugal o “fanado” se realiza em secretismo na comunidade guineense. Sabemos que em Agosto de 2019 haviam sido reportados 54 casos de MGF em Portugal.

Sentimentos de humilhação, impotência, vergonha e traição familiar podem desenvolver-se quando essas mulheres deixam a cultura que pratica a MGF e descobrem que a sua condição não é a normal.

Têm tido algum apoio por parte de Portugal no vosso trabalho contra a MGF?

Não, a ADDHU não tem qualquer tipo de apoio por parte de Portugal.

Poder-se-á dizer que a MGF ainda é uma dura realidade porque só se fala deste tema em determinadas campanhas?

De certo modo sim. Não é um trabalho constante da sociedade. Há muitas agências e organismos que tratam deste assunto e lutam pelo fim da MGF, no entanto a eficácia seria maior se houvesse uma consciencialização a nível da sociedade em geral, a nível mundial. Estas realidades não são faladas e deparei-me várias vezes com grupos de estudantes do 12º Ano, nas inúmeras palestras que realizei pelo país ao abrigo do nosso programa Cidadãos do Mundo, que não tinham a menor ideia desta realidade e de muitas outras vividas e sofridas no continente africano e por esse mundo fora.

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