O disco maldito – conto de halloween

por Guilherme Rego
João MeloJoão Melo*

“O horror e a fatalidade uniram-se sempre em todos os séculos” – Edgar Allan: põe terror nisso, pá. A história que vos vou contar aconteceu numa dimensão tão vasta quanto o espaço e tão atemporal quanto o infinito, no meio termo entre a luz e a sombra, quando ainda não havia halloween em Portugal, só o dia dos mortos. Também havia discotecas, daquelas que vendem discos, imagine-se… Seguindo as normas de cortesia dessa altura, o vendedor punha-os a tocar, não existiam audições privadas e o som saía para fora pelas colunas, do mesmo modo que os miúdos hoje transportam “tijolos” alardeando rappers chateados com o universo. Esta era uma discoteca de bairro cujo dono, um entusiasta do áudio, também vendia aparelhagens, e o sistema de som onde se escutavam os vinis ganhara fama de obra-prima do hi-fi, sim com “h”, não com “w”. Nesse dia o dono ausentara-se, estava a esposa, uma senhora baixa e roliça, desfasada da época em que vivia; talvez nunca fosse escolhida para ser a cara da Dior, mas podia perfeitamente ser o cu da Lanalgo. Ao colo dormitava o Bolinhas, o seu cão de companhia. 

Entrou um adolescente de ar introvertido na loja, cumprimentaram-se, e ambos perceberam nesse instante que a audição de um disco seria tarefa complicada. À partida o aspecto atinado não revela dados conclusivos, manda a prudência jamais confiar num jovem. Logicamente a senhora previa sofrer ao som de tarolas e pratos furiosos, guitarras distorcidas, berros desconexos. Finalmente acresce um pormenor de suma importância, ignorado por ela, antevisto por ele: iria adquirir o seu primeiro disco, pretendia ouvi-lo no lendário som do estabelecimento quer fosse ou não incomodar os outros. Correspondendo a um ritual de passagem para a vida adulta, e estando à beira de se tornar num deles, mais que um disco, o dinheiro no bolso comprava o direito a aguentarem-no. Quase tivera um desmaio de comoção quando há meses vira pela primeira vez aquele diamante no meio da banalidade musical da loja. Como raio teria ido ali parar aquilo? Poupara e esperara eternidades para o obter, mais ou menos convicto que ninguém o levaria; acertou. A senhora viu-o pegar num LP de capa preta, austera, com uma impressão aparentemente mal-amanhada daquilo que parecia um rádio velho, sem exibir guedelhudos, instrumentos ou símbolos satânicos, nenhum sinal reconhecível pelo bom senso, enfim, um mistério. Se fosse mais letrada suspeitaria do mal, afinal três espartanas palavras em alemão nunca são um bom augúrio, qualquer que seja o contexto exalam um humor estranho, negro; podemos não saber o que está escrito mas certamente estão a gozar connosco, recordam-se de “o trabalho liberta”? Pois. Bem, totalmente parva a senhora não devia ser; calejada de empírico receio desce o braço do gira-discos sobre o LP e… 

Abriu-se uma caixa de Pandora de consequências terríveis. Nada a preparara para aquele momento: em vez de batidas alucinadas, guitarras eléctricas, gritos ou sabe-se lá o quê, escuta-se um ruído sincopado; aos poucos a frequência aumenta de intensidade e volume até se escancararem os portões da twillight zone numa erupção de coros em mellotron, quais almas penadas de um inferno extra dimensional. O disco intitulava-se Radio Activity, dos Kraftwerk, na primeira faixa ouvem-se simplesmente estalidos de um contador Geiger. O horror estampado nos olhos da pobre mulher, a vontade de explodir de riso amordaçada no peito do jovem. E isto foi apenas o início do calvário, porque logo a seguir tudo piorou. Num volume de som colossal para as dimensões da loja, vozes em vocoder aprisionadas nos circuitos de um computador alienígena misturam-se numa orgia macabra de ondas electrónicas desde o infra ao ultra som, e o Bolinhas não aguenta mais: desata a uivar em agonia! É natural, coitado, tais vibrações sintéticas violentavam a natureza dos finíssimos cílios auditivos, danificando irremediavelmente as sensíveis membranas timpânicas, para já não falar da possível criação de imagens assustadoras no seu cérebro tenrinho, formatado para correr atrás de borboletas por entre as flores do prado. 

No fim de contas o jovem de aparência discreta era um dissimulado esbirro de Lúcifer que viera trazer o caos. A senhora e o cão tiveram nesse dia um vislumbre do apocalipse, pelo menos o das máquinas. Melhor fora terem-se entregado à experiência no radical sentido da palavra apocalipse, “revelação”; resistindo sofreram. Acossado por um lancinante sofrimento auditivo o Bolinhas não parava de uivar, a senhora assustada e envergonhada pela resposta genuína do bicho apenas conseguia dizer “chiu, cala-te”. Subitamente o cão salta do colo da dona e mija-se em frente a um sistema de som Onkyo, o Rolls Royce da alta fidelidade da época. O novel cliente rebentou em gargalhadas mentais, a figura do cão lembrava-lhe o símbolo da editora His Master’s Voice numa versão cómica, mas sabia que o animal tinha razão, olá se sabia. O infeliz Bolinhas deve ter farejado a presença do Cérbero, e perante a inequívoca manifestação de pavor canídeo o adolescente deixara de desfrutar a experiência, dizendo à senhora “sim, é este” como se a audição o tivesse esclarecido quanto àquilo que se propunha levar para casa. Meio paralisada ela tira o disco do prato, mete-o na capa, abre a caixa registadora e recebe o dinheiro. No seu rosto estampava-se a incredulidade de quem viu um OVNI, a incompreensão por alguém levar uma coisa que obrigatoriamente deveria ostentar avisos para usar protectores auditivos, manipular-se de luvas e fato anti-radiação. O rapaz saiu deixando atrás de si um rasto de destruição, e assim que o marido chegou a senhora contou a história, jurando a pés juntos que ele partira da loja num Anglia Fascinante voador igual ao do Harry Potter…  A reacção ao choque varia de pessoa para pessoa. Tive uma tia alentejana que num inverno particularmente frio do início do século XX acordou de manhã e toda a paisagem encontrava-se coberta por um branco manto de neve. Nunca tinha visto essa ocorrência meteorológica, nem sabia do que se tratava. Conta-se que a encontraram imóvel a olhar pela janela, ficou “pasmada”, e a partir desse choque emudeceu para o resto da vida. Após aquele fatídico dia a saúde mental da senhora da loja deteriorou-se, tendo acabado internada num asilo para loucos. Quanto ao Bolinhas, meia hora depois da experiência sonhava novamente com borboletas, embora nunca fosse explicado porque passou a ter peladas, vindo a falecer em três semanas deitando sangue p’los ouvidos.

*Músico e embaixador do PLATAFORMA

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