O que trazem os juízes estrangeiros

por Filipa Rodrigues
Catarina Brites Soares

Experiência e independência é o contributo que magistrados estrangeiros podem dar às regiões especiais de Macau e Hong Kong. Sérgio de Almeida Correia, David Chan, Ho Kam Meng e Frederico Rato concordam que são uma mais-valia, mas divergem no papel que devem ter

A contratação de Patrick Hodge para o Tribunal de Última Instância de Hong Kong – depois da controversa demissão do australiano James Spigelman por preocupações face à Lei de Segurança Nacional – voltou a suscitar o debate sobre a relevância de magistrados estrangeiros nos tribunais das regiões. A propósito da nomeação do escocês, a Chefe do Executivo Carrie Lam afirmou que “a presença de juízes não-permanentes mostra a independência do sistema judicial de Hong Kong, contribui para manter a elevada confiança na Justiça e permite que a região mantenha fortes ligações a outras jurisdições da Common Law”. 

Há quem concorde que a presença de externos é um sinal claro da intenção em manter o princípio Um País, Dois Sistemas e o Estado de Direito. Outros defendem que ser de fora não basta. 

“É necessário que o Governo continue a contratar juízes estrangeiros a fim de fortalecer o modo de funcionamento exclusivo do tribunal sob o princípio ´Um País, Dois Sistemas´, julgamento justo e demonstrando justiça”, afirma o advogado Ho Kam Meng, que acredita que a prática continuará com ambos os Chefes do Executivo. 

David Chan, do Instituto Politécnico de Macau, fala de “grandes benefícios”. “O maior é o de aproximar os padrões das regiões dos internacionais. A sua nomeação garante também a independência na Justiça, e mostra ao mundo que está bem conservada em Macau e Hong Kong”, reforça o professor da Escola Superior de Ciências de Gestão, formado em Direito. 

Já o advogado Sérgio de Almeida Correia diz que a experiência e conhecimento do sistema jurídico português estão na base da contratação de portugueses, mas ressalva que também é uma estratégia para preservar uma certa imagem externa. “Mesmo que o contributo de quem se recruta possa vir a ser de pouca valia, internacionalmente será sempre uma flor na lapela. É uma forma de se dizer, ainda que isso não corresponda à verdade, que se estão a cumprir compromissos”.

Em Hong Kong, acrescenta, o recrutamento de especialistas de fora tem outra dimensão. “Têm-se trazido magistrados e juristas de topo de sistemas de Common Law para exercerem as mais altas funções. Coisa que em Macau não acontece. E também não me parece que alguém queira. Em Macau, o sistema cristalizou, fechou-se, diria mesmo que se governamentalizou”, critica.

O advogado defende que não faz sentido trazer magistrados portugueses para a Primeira Instância sem experiência e conhecimento de Macau, para fazerem comissões por períodos reduzidos e sempre dependentes de posteriores renovações. “E confesso que também não vejo com bons olhos que quem exerceu anteriormente funções subordinadas dentro do Governo ou da Administração Pública, durante vários anos, seja depois colocado a exercer funções na magistratura. Menos ainda que magistrados portugueses depois de jubilados venham ou aqui continuem para exercerem funções menores, que não os dignificam, e incompatíveis com o estatuto de jubilação”, refere. O ideal, sugere, era que quem viesse de fora fizesse uma única comissão, por um período relativamente longo, cinco ou seis anos, e não renovável. “Isso traria mais independência ao sistema judicial”, salienta.

A contribuição de magistrados estrangeiros inscreve-se na aplicação do princípio ´Um País, Dois Sistemas´, reitera o advogado Frederico Rato. Foi para assegurar essa continuidade, frisa, que Deng Xiaoping garantiu na Lei o apoio de externos. “É o que tem vindo a acontecer com manifesta eficiência, qualidade e credibilidade do sistema judicial e funcionamento dos tribunais nas três instâncias”, realça. 

Integração

Em maio, Macau recrutou mais dois juízes portugueses. No total, são quatro. Em Hong Kong, os estrangeiros são 14. O artigo 87 da Lei Básica de Macau permite que a região contrate magistrados de fora, assim como o artigo 82 da Lei Básica de Hong Kong. Apesar da prerrogativa estar garantida em ambas as legislações, David Chan explica que há diferenças. “Enquanto que em Macau, os juízes estrangeiros podem julgar em qualquer Instância, no caso de Hong Kong apenas o Hong Kong Court of Final Appeal pode convidar juízes de outras regiões da Common Law”.

Volvidos 21 anos desde a transferência de soberania, ambas as regiões debatem-se com um dilema: como compatibilizar a progressiva integração no País, mantendo o Segundo Sistema que implica a vigência do Estado de Direito e consequente independência judicial. O presidente do Tribunal de Última Instância foi o último a apontar obstáculos. Sam Hou Fai defende que Macau “entrou numa fase intercalar”, estando na hora de “analisar e estudar atentamente os desafios e problemas enfrentados durante a aplicação do sistema jurídico de Macau que, por motivos históricos, se inspirou no sistema de Portugal”.

Ho Kam Meng afirma que a área da Grande Baía será o principal motor do desenvolvimento e por isso considera necessário reforçar a integração do sistema jurídico, mas mantendo o conceito central do sistema jurídico português e criando um sistema jurídico que vá ao encontro das necessidades de Macau. “Não creio que o conteúdo do discurso do Presidente do Tribunal de Última Instância seja um indício de interrupção das trocas jurídicas entre Macau e Portugal”, interpreta.

Almeida Correia também acha que não se trata de uma verdadeira rejeição, mas sim de uma tentativa de aproximar o sistema local do modelo de funcionamento próprio do estado socialista, “funcionalizando os tribunais, como um instrumento do poder político”. 

Para o advogado é pacífico que as questões pertinentes sejam estudadas e discutidas. O que não pode acontecer, vinca, é que o sistema jurídico e tribunais paguem por erros de natureza política. “Uma coisa é querer melhorar o sistema, outra é pretender destruí-lo e substituí-lo por algo que ninguém sabe bem o que é, antes do final do período de transição, apenas porque não se consegue fazer melhor com o que se tem ou se parte com ideias pré-concebidas.”

Frederico Rato confessa-se confuso com o significado da expressão “fase intercalar”. Intercalar, aponta, será todo o tempo que decorre entre 20 de dezembro de 1999 e 20 de dezembro de 2049, quando termina o período de transição para Macau. “É saudável haver reflexões sobre a continuação do Segundo Sistema, mas a consagração constitucional de 50 anos de permanência inalterada de políticas fundamentais em Macau anunciadas pela República Popular da China (RPC), e claramente plasmadas na Lei Básica e na Declaração Conjunta, é para respeitar do primeiro ao quinquagésimo ano. A instância do senhor presidente não constitui para mim uma rejeição do Segundo Sistema, mas uma preocupação intelectual no devir até 2049”, analisa.

Segurança não é para todos

A revisão da “Lei de Bases da Organizações Judiciárias” em Macau foi outro dos momentos que voltou a pôr na ordem do dia o papel dos juízes estrangeiros nas regiões e a independência dos tribunais. A alteração da legislação prevê que só chineses podem julgar crimes relativos à Segurança do Estado. O assunto divide a comunidade jurídica entre os que entendem a limitação e os que a consideram um atentado ao Estado de Direito. 

“Acredito que, com total respeito pelos próprios juízes estrangeiros, está de acordo com as necessidades práticas”, considera Ho Kam Meng. O também professor na Escola de Direito da Universidade da Cidade de Macau argumenta que os novos regulamentos não contradizem o princípio de contratação de juízes estrangeiros previsto na Lei Básica e que por isso não há descriminação; evitam situações que lesem a dignidade do país e recusas já que os juízes estrangeiros estão obrigados à dupla lealdade a Macau e à RPC -; e inconsistências ideológicas. “Os cinco crimes na Lei relativa à defesa da Segurança do Estado são baseados nas condições nacionais como cultura, ideologia, modo de operação do Governo e crenças religiosas do povo do país. Se um juiz que não é cidadão chinês servir como julgamento, é inevitável que o julgamento que surgiu sem o entendimento das condições nacionais seja questionado”, justifica.

David Chan salienta que a segurança cai no âmbito dos interesses nacionais, e que por isso é preciso cuidado. “A solução da legislação em vigor é similar à da maioria dos países.”

Para Sérgio de Almeida Correia a limitação é mais uma discriminação. “Das muitas que tentam aqui impor e que vão do uso da língua portuguesa nos tribunais ao preço dos bilhetes dos autocarros e churrascos. Sem esquecer as restrições à entrada e saída de estrangeiros e a não-residentes por causa do covid-19, ou o acesso à saúde e a determinados fármacos”. 

Frederico Rato também se opõe à exclusão. “Nenhum sistema judicial se impõe com confiança, credibilidade e transparência com juízes de pé-coxinho. O juiz qualificado e capacitado julga de acordo com a Lei, independência e imparcialidade, e não segundo critérios de nacionalidade e patriotismo sob pena de não aplicar a Justiça.”

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