“Moçambique em risco de cair na dependência financeira da China”

por Gonçalo Lopes
Gonçalo Lopes

O Centro de Integridade Pública (CIP) considerou há uns dias que a dívida de Moçambique à China era “pouco transparente”, exigindo que o governo de Filipe Nyusi explicasse como irá gerir este encargo. Os valores em causa estão também na base das críticas, dado que o governo fala em 1,1 mil milhões de euros e o CIP em 1,7 mil milhões. Agora, em entrevista ao PLATAFORMA, a ONG moçambicana critica também a forma como foi utilizado este dinheiro por parte do governo, salientando ainda que a dívida pode ser comparada ao passado recente de dívidas ocultas do estado moçambicano

Há dez anos que Moçambique trabalha bastante com a China. Aliás, há registos que comprovam que as ligações financeiras são bastante fortes com este país asiático. Que opinião tem o Centro de Integridade Pública (CIP) sobre os empréstimos que Moçambique tem realizado junto da China desde 2010?

Em detrimento de maiores investimentos nos sectores sociais, o montante destes empréstimos foram usados para financiar projetos de investimento em infraestruturas de grande envergadura. Aliás, diga-se de passagem, a maior parte foram projetos de carácter comercial ou administrativo. É importante frisar que estudos[1] demonstram que investimentos públicos em grandes infraestruturas são aqueles que apresentam elevados níveis de pagamento de subornos a funcionários públicos de topo e a elites governativas. Experiências internacionais mostram que investimentos em grandes projetos de infraestruturas só geram receitas significativas para um Governo depois de muito tempo, sendo que às vezes nem chegam a gerar. O pagamento desses empréstimos incide sobre o orçamento de Estado, o que implica que esses pagamentos são financiados por recursos subtraídos de outros sectores, por exemplo, para fortalecer a capacidade do país face aos desafios impostos pela COVID-19. Portanto, o Governo, para o bem da transparência, deve tornar públicos os estudos de viabilidade sobre estes investimentos de modo a mostrar que os mesmos podem gerar receita suficiente para fazer face ao cumprimento do respetivo serviço da dívida.

O CIP criticou recentemente os relatórios da dívida pública do Estado moçambicano face à China, quais as razões desta crítica?

Os Relatórios da dívida pública contêm os detalhes por credor, e portanto incluem a China, mas não incluem informações sobre projetos específicos relativos às transações financeiras (quer dizer, juros e amortizações) com a China, o que representa uma fraqueza para um documento que na sua generalidade tem um conteúdo rico.

Os pagamentos dos empréstimos são financiados por recursos subtraídos de outros sectores, por exemplo, para fortalecer a capacidade do país face aos desafios impostos pela COVID-19

Os números que o CIP apresentou sobre o total da dívida são também diferentes daqueles apresentados pelo Estado. Em que se baseiam e porque razão consideram que o Estado divulgou números diferentes?

O CIP não conhece a razão por que o Estado divulgou números diferentes referente à dívida com a China. Para a nota preparada pelo CIP [onde revelaram que a dívida seria no valor total de 1,7 mil milhões de euros, contra os 1,1 mil milhões apresentados pelo Estado] foram usados os Relatórios da dívida pública e os Relatórios e Pareceres da Conta Geral do Estado (RPCGE) preparados pelo Tribunal Administrativo. Ambos são documentos do Estado acessíveis ao público.

Foram essas as razões para que o CIP tenha sido bastante ‘duro’, considerando a dívida como “assustadora e pouco transparente“?

Sucede que sobre os empréstimos realizados não existe informação pública satisfatória (estudos de viabilidade) que justifique o tamanho da divida com China, sobretudo devido às incongruências e à falta de transparência dos documentos orçamentais. A dívida com a China cresceu rapidamente depois de 2010, alcançando um pico de USD 2,17 mil milhões em 2018. Um nível tão alto de dívida com um só país, que representa uns 20% da dívida pública total de Moçambique e uns 37% da dívida pública bilateral, apresenta riscos fiscais significantes, particularmente no que concerne à capacidade do Orçamento do Estado satisfazer as necessidades do serviço da dívida, tanto em juros como em amortizações. Esse nível alto expõe Moçambique ao risco de cair na dependência financeira da China, podendo esse país exercer uma pressão enorme sobre o Governo – uma possível armadilha da dívida com a China. De entre os indicadores de custo e risco associados aos empréstimos, relativamente à China, destacam-se o custo e o risco cambial [relacionado com a alteração das taxas de câmbio e o seu impacto nos custos do serviço e nos stocks da dívida]e o risco da média ponderada da taxa de juro [indicador do custo ponderado da carteira de dívida].

Um nível tão alto de dívida com um só país, que representa uns 20% da dívida pública total de Moçambique e uns 37% da dívida pública bilateral, apresenta riscos fiscais significantes

Entretanto, o Estado, realizou um pedido de perdão de dívida junto da China, de acordo com o divulgado pelo ministro da Economia e Finanças, Adriano Maleiane. Foi uma medida acertada ou peca por escassa?

O CIP não tem informação do que o Estado obteve quanto ao perdão de dívida. Muitas vezes o Governo solta cifras que não podem ser comprovadas; sem dar detalhes aos moçambicanos . Não se sabe o que o Governo está a conseguir em relação ao alívio da dívida com a China. É verdade que o Ministro de Economia e Finanças informou que o pais solicitou perdão de divida a China, mas entretanto não temos informações adicionais.

Criticam a possível “dependência” da China e o que advém dessa realidade. São da opinião que os empréstimos poderiam ser feitos a outros estados, que não a China? Por exemplo junto de países Lusófonos?

O importante é notar que o Governo fez empréstimos para projetos para os quais não foram publicados os estudos de viabilidade. Em casos de infraestruturas grandes sempre existe o perigo de um governo querer executar projetos tipo “elefante branco”, em detrimento de investimentos urgentemente necessitados nos sectores sociais. As políticas de anos anteriores agora estão a por o orçamento sob pressão com as obrigações de pagar o serviço das dívidas que tiram recursos para combater a Covid-19.

Construção da ponte da Baía de Maputo, o maior projeto de infraestrutura da China em Moçambique, edificada pela empresa China Road and Bridge Corporation

Muitas vezes o Governo solta cifras que não podem ser comprovadas; sem dar detalhes aos Moçambicanos

Há um passado recente de ‘dívidas ocultas’ do estado moçambicano. Consideram que esta ligação com a China poderá seguir esse caminho, é esse o vosso receio?

O facto do nível das dívidas à China ser tão alto, coloca-as num nível de risco fiscal semelhante ao das dívidas ocultas. Dívida dessa magnitude com um só país apresenta riscos fiscais significantes, particularmente no que concerne à capacidade do Orçamento do Estado satisfazer as necessidades do serviço da dívida. Combinado com uma falta notável de transparência, o Governo deve esclarecer aos moçambicanos como vai pagar essa dívida e apresentar detalhadamente os projetos que constituem a dívida. Sem estas informações, dada a trajetória do Estado na gestão da dívida, o CIP teme que a informação partilhada é só a ponta do icebergue—com mais sacrifícios iminentes para pagar dividas não divulgadas pelo Governo.


[1] Fazekas, M & Toth, B. (2016), Infrastructure for Whom? Corruption Risks in Infrastructure Provision Across Europe, www.researchgate.net

Pode também interessar

Contate-nos

Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

Plataforma Studio

Newsletter

Subscreva a Newsletter Plataforma para se manter a par de tudo!