Ó pai, ó pai

por Filipa Rodrigues
João MeloJoão Melo*

Neste momento a pandemia está fora de controlo no ocidente, e não descortino outra forma de dizer: António Costa não sabe o que fazer, porém o mais dramático é que isto não infere que alguém saiba. Mesmo sendo uma falácia, porque cedemos voluntariamente dados pessoais às grandes corporações, o maior problema na contenção do vírus resulta do desafio colocado aos princípios da privacidade e liberdade.

No Império do Oriente, qual colmeia ordenada, há muito que os cidadãos abdicaram deles em prol da segurança e conforto, aceitam ordens do governo sem contestar; aliás a desobediência é severamente punida, contribuindo para inibir potenciais infractores. Nos países ocidentais nutre-se uma especial devoção pela liberdade individual, em alguns casos ela chega ao endeusamento, situando-se acima do bem comum. E assim iremos sofrer mais.

A pandemia põe à prova a responsabilidade e civismo dos povos, manifestada especialmente nos jovens. Nesta medida assistimos impotentes às consequências da falta de educação, ao desacompanhamento parental que em boa verdade vem de gerações anteriores, à dúbia moral de ceder privacidade para umas coisas e reclamá-la para outras. Nada mudou apenas se acentuou pela variedade de estímulos digitais que fecham cada indivíduo no seu próprio mundo. Além disto, o ser humano é um animal social e apartá-lo do contacto físico com os semelhantes acarreta inúmeros problemas. A privação tolera-se ma non troppo, e quanto mais prolongado for o confinamento, mais vontade de o compensar virá depois, naturalmente acompanhado de excessos. Acresce que a infecção entre os jovens e adultos saudáveis, na sua generalidade, não tem de momento consequências visíveis, logo a incompreensão por medidas restritivas demasiado extensas leva ao desleixo ou à rebelião assumida. Salvo raras excepções verifica-se que o covid19 atingiu em cheio o coração do ocidente: as Américas e a Europa. Se a pandemia fizesse parte de um plano disruptor do nosso modelo de sociedade, diria que foi perfeito… 

Sendo impossível corrigir no imediato a cristalizada estrutura do comportamento colectivo, Costa propõe a obrigatoriedade de uma aplicação para smartphones, sem sequer ter ideia de que modo se poderá implementar e fiscalizar. É o desnorte de quem não consegue responder capazmente à crise, igual a aplicar pensos rápidos numa hemorragia, prenunciando mais descontrolo emocional e ameaças à medida que a situação for piorando. O próprio criador da aplicação disse ter sido apanhado de surpresa pela proposta do primeiro-ministro e que não entenderia bem que ela viesse a tornar-se obrigatória. A Ordem dos Médicos partilha desta ideia. Claro, conforme tudo na vida, tendemos a aderir se for opcional, resistimos se for obrigatório.

Quando Costa afirma odiar ser autoritário mas é obrigado a isso, reproduz a típica resposta dos governantes que perdem a razão, sejam ditadores ou democratas. Atribui-nos um estatuto de meninos que se portaram mal, o que me recorda outro castigo aplicado por Passos Coelho na época em que fomos acusados de andar a gastar acima das nossas possibilidades. No entanto o mais democrata dos autoritários espera que não vejam nele “um papão”… O paternalismo enternece-me, significa que enquanto nos dá tau-tau dói-lhe mais na alma que a nós no rabo. Parece aquele pai que ante o “porquê?” do filho perde a paciência e termina a discussão com um lapidar “porque sim, porque sou eu que mando cá em casa”.

Não estou a sugerir legitimidade ou falta dela para a atitude do primeiro-ministro, o que digo é que compreendo e não aceito. Irei ter os cuidados que sempre tive, distanciamento social, uso de máscara já desde que era desaconselhada, e também de forma típica responderei à obrigatoriedade de instalar a aplicação não a instalando, o expectável depois de se ser tratado como um miúdo. Obviamente que farei disto uma birra até às últimas consequências jurídicas. Teimosia? Atitude vã? Talvez, contudo enquanto viver vou estrebuchar ainda que vencido pela escravidão total, o cenário que se configura numa questão de tempo, aqui ou na Conchichina, através da fome, da sede, da doença, dos gafanhotos, da morte dos primogénitos, aplicações ou outra merda qualquer. Para mim é um princípio que pretendo seguir e deixar registado.

*Músico e Embaixador do Plataforma

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