Gastronomia ajuda a criar laços entre mais desfavorecidos e a comunidade

por Filipa Rodrigues
Carol Law

Arroz de pato, frango à portuguesa, costeletas – pode parecer uma lista de pratos típicos de um velho restaurante, mas na verdade faz parte do “Canto Português”, no Centro da Associação de Reabilitação Fu Hong de Macau. Este restaurante abriu pela primeira vez a 15 de outubro de 2020, como forma de fornecer aos residentes de Macau um serviço de restauração de qualidade e ao mesmo tempo oferecer a portadores de deficiências mentais uma oportunidade de treino vocacional. Alguns dos funcionários da cozinha que usufruem do treino expressam a vontade de continuar a explorar os respetivos interesses e talvez até de se tornem chefes profissionais. A diretora da Associação, Jennifer Chau, espera com o “Canto Português” não só conseguir criar um serviço de restauração para os residentes locais como também desenvolver uma relação mais próxima entre os utilizadores deste serviço e a comunidade. 

O sonho de ser chefe de cozinha

O “Canto Português” é o primeiro espaço de restauração a obter uma licença de operação através do Instituto de Ação Social. Wen Zheng, um dos trabalhadores da cozinha, contou que não se adaptou bem ao ensino secundário, talvez pela pressão excessiva que sofria, e por isso não conseguiu concluir os estudos. Chegou a trabalhar como segurança no aeroporto, mas devido aos medicamentos que tomava adormeceu durante o trabalho e veio a perder o emprego. Com o nível de educação e os efeitos secundários da medicação, tem sido difícil encontrar emprego. Depois de os médicos mudarem a prescrição e lhe sugerirem que frequentasse a Associação de Reabilitação Fu Hong, a situação melhorou largamente.

“Desperdicei muito tempo da minha vida em casa sem trabalhar. Agora a relação com os meus familiares também melhorou. Embora a família me tenha ajudado muito, por vezes tinha mau temperamento ou estava chateado, e discutíamos. Agora sou mais competente, e os meus pais já são idosos, têm mais de 70 anos. Com esta idade devo tomar conta deles”, disse.

Wen Zheng salientou que tem recuperado e trabalhado na associação ao longo dos últimos anos. Já lavou carros, distribuiu panfletos e trabalhou em vendas. Há muito tempo que tem interesse em gastronomia, por isso acabou por escolher a cozinha do “Canto Português”, e foi aí que descobriu o talento para a culinária. “Quando cozinho um bom prato para alguém sinto que tenho um propósito. Quando estudava já planeava trabalhar em cozinha, mas devido à minha condição, tinha medo de não conseguir controlar as emoções e por isso nunca segui esses planos. Esta oportunidade fez-me querer escolher este caminho. Os meus irmãos (mais novo e mais velho) e o meu tio também trabalham em cozinha, por isso acredito que tenho talento”, assinalou.

Wen ainda está a receber formação e afirmou não ter pressa. Acrescentou que a avaliação de incapacidade passou de “grave” para “moderada”, e que o próximo objetivo é continuar saudável e a trabalhar, para descobrir se consegue de facto seguir uma carreira na área. “Quero ser chefe, aprender bem um ofício que possa ajudar-me no futuro.”

Dificuldade em encontrar trabalho

Segundo os “Registo de Avaliação da Deficiência” do Instituto de Ação Social de Macau, até ao dia 31 de março de 2020 estavam registadas com deficiência mental 2.854 pessoas, a terceira maior categoria entre as seis deficiências reconhecidas em Macau, representando 20,24 por cento. Citando uma sondagem de 2018 do IAS, mais de 80 por cento destes portadores de deficiência mental não possuía emprego ou rendimento regular, grande parte dependia de ajuda social e subsídios governamentais, por isso tinham também uma visão negativa da vida em comunidade, acreditando que o resto da população não tem conhecimento suficiente sobre a condição e não os compreende. 

A associação adiantou que em 2018, 91 beneficiários da pensão de invalidez pediram licença para trabalho temporário, 15 dos quais conseguiram emprego (16,5 por cento), 36 ficaram sobe avaliação (39,6 pc), 38 voltaram à pensão de invalidez (41,8pc) e os restantes dois beneficiários cancelaram a candidatura ou não a renovaram (2,2 pc). Dados sobre o terceiro trimestre de 2019 revelaram que existiam 7.659 beneficiários desta pensão, mas apenas 91 participam neste plano, ou seja, menos de 2 pc. Apenas 15 doentes recuperaram e voltaram ao mercado de trabalho. A percentagem de doentes que participou neste plano ou que consegue, de facto, voltar a trabalhar é por isso muito baixa. Existe pouco apoio à procura de emprego por portadores de deficiência (incluindo deficiência mental). Atualmente poucas empresas em Macau empregam estes cidadãos, e a maior parte das que o fazem são instituições sociais.

Jennifer Chau, diretora da Associação de Reabilitação Fu Hong de Macau, disse que espera, através deste centro, oferecer à comunidade vários tipos de serviços, melhorando a relação entre os beneficiários e a comunidade local, para que os possam compreender melhor. Cita o “Canto Português” como exemplo, que logo de início teve a sorte de receber um grande apoio, com vários fornecedores a oferecer ingredientes a um preço muito atrativo, e alguns hotéis a doarem frutas que não foram usadas nos buffets, mas que se encontram ainda em bom estado para utilização e venda. Foram “desafiados” por chefes profissionais e alguns portugueses ofereceram receitas de família. Jennifer Chau afirmou que o restaurante, nesta fase inicial, só servirá almoços, mas que lentamente os serviços serão alargados. Assegurou também que os portadores de deficiência durante o serviço estarão mais calmos e menos motivados se estiverem sob efeito de medicação. Por isso, acrescentou, o horário da formação tem de seguir essas necessidades, possibilitando que voltem ao centro se for preciso. “Voltam para conseguirem manter a mesma energia e evoluir. Podemos também oferecer treino neste sentido”, apontou.

Atualmente o restaurante está disponível para marcações através de um formulário online. A diretora afirmou que antigos doentes querem muito aprender um ofício e ser reintegrados na sociedade, e o “Canto Português” é o local perfeito, onde podem receber formação. “Esperamos que evoluam passo a passo, que possam até chegar à posição de chefe, ou ficar a servir cafés ao balcão. Alguns poderão até tornar-se baristas profissionais”, previu. Atualmente existem 10 doentes em reabilitação a trabalhar no “Canto Português”. Alguns doentes recuperam muito rápido. “Passado um período de tempo acreditam que estão melhor, e que podem ir procurar emprego, por isso a taxa de recuperação através destes workshops é maior. Queremos oferecer-lhes formação nesse sentido. Poderá haver alguns imprevistos durante a fase de teste deste restaurante, mas contamos com a compreensão dos utentes”, apelou.

Segundo a Associação, como o estado clínico destes doentes pode gerar dificuldades na manutenção de um emprego a tempo inteiro, a maioria prefere part-time, mas o objetivo, enquanto instituição social não é maximizar o lucro, mas sim concretizar objetivos e benefícios sociais e económicos específicos. Estas instituições podem ajudar a resolver a alienação social dos doentes através de emprego, e o Governo pode incentivar a que mais empresas façam trabalho social como este, permitindo assim que, após terminarem a formação, estas pessoas possam iniciar a vida como trabalhadores, primeiramente neste tipo de empresas, como uma fase de adaptação, podendo posteriormente integrar-se na sociedade. A associação disse esperar ainda que o Governo direcione mais recursos para os serviços de reabilitação mental, oferecendo mais opções de treino vocacional direcionado a este grupo, para que possam, na prática, escolher uma área que os interesse e forneça motivação após a reabilitação. 

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