O negócio da violência

por Guilherme Rego
João MeloJoão Melo*

Os telejornais abrem o noticiário com a pandemia, vão direitos à agenda política, seguem os casos de justiça onde impera a corrupção, roubos, e crimes de sangue, às vezes vão até ao bairro onde houve uma rixa, debruçam-se sobre as intermináveis fatalidades do mundo, sustêm o fôlego num intervalo comercial, regressando a falar de futebol e acabam em gastronomia. 

Buscando alívio das tragédias nacionais e internacionais, mudo para o Fox, o canal de séries de maior audiência em Portugal. Em 24 horas este canal passa 30 episódios de várias séries, em cada episódio conta-se a história de pelo menos um crime envolvendo um assassinato. São 30 assassinatos num dia, 900 ao mês, 10800 por ano. Nos outros canais de entretenimento, quer passem filmes ou séries, o número de vítimas mortais não anda longe destes. Não sei se mencionei mas o exemplo referia-se ao Fox generalista, não ao Fox Crime. 

Vamos ao cinema? O maior sucesso em 2019 foi “Vingadores: Ultimato” que obteve 2800 milhões de dólares de receita. Qual a temática do filme, super-heróis? Dado desconhecer fui procurar na net: “Se não esteve em coma nos últimos dez anos sabe que Vingadores: Ultimato é o maior evento da história dos cinemas”. Pelo menos fiquei a saber que estive em coma… Continuando. “O filme é incrível, lotado de super heróis, batalhas monstruosas, só que numa escala jamais vista, nem em outros filmes dos Vingadores. O que provavelmente sabia, mesmo em coma, é que nem todos sobrevivem à batalha final contra Thanos.” Olha, nem fazia ideia. Já agora, quem é o Thanos, a morte? 

Jogos! ‘Bora jogar? Um dos jogos de consola mais populares de sempre chama-se “Grand Theft Auto” onde o jogador é protagonista de missões criminosas. Os inimigos são os gangs rivais e a polícia. A 5ª série tornou-se o produto de entretenimento mais rapidamente vendido da história, arrecadando mil milhões de dólares em 3 dias. Então é isto que os nossos filhos aprendem nas horas vagas, a roubar e a matar?

Apesar de baixa a percentagem de quem assistiu a um assassinato ao vivo, expomo-nos diariamente a dezenas deles. Nos Estados Unidos, o maior produtor mundial de entretenimento, existe um claro objectivo de exploração comercial de espectáculos violentos, enquanto se encoraja uma cultura de guerra, vitimização e medo. De certeza não será o único factor, contudo associo imediatamente esta lógica à juventude da nação, acentuada pela falta de raízes. Em contrapartida há liberdade e espaço para desbravar, depende da ousadia de cada um, atitude que no seu melhor permite avanços intelectuais, científicos, civilizacionais… 

Em todo o mundo parece haver a nível interpessoal uma forte relação entre a violência e a pobreza, desigualdade de rendimentos das etnias, géneros e raças, uso de drogas ilegais e outras socialmente aceites, falta de valores comuns, relações estáveis e seguras entre as crianças e os pais. Estou convencido de que se estabelecêssemos colónias noutros planetas, exportaríamos os modelos de violência já existentes na Terra. A verdadeira mudança de paradigma só se implementará se ocorrer dentro de cada um de nós, enquanto isso não suceder as conquistas exteriores vão-nos iludindo. 

Apesar de o sistema límbico ser muito complexo, hoje há evidências de a amígdala, uma região no cérebro que controla reacções emocionais a estímulos marcantes, ser um dos mais importantes centros reguladores dos comportamentos sexuais e agressivos. As dificuldades económicas, a frustração, imobilidade e tédio, o consumo de álcool, as notícias e entretenimento que nos são disponibilizados não estarão a exercer sobre a amígdala uma hiper excitação? E a violência não será também um gigantesco negócio baseado na exploração das funções primitivas do cérebro, e cujos danos colaterais não são assumidos por quem a promove? É uma lástima constatar que continuamos a ser explorados como bichos porque negligenciamos aquilo que nos eleva da bestialidade, o neocórtex. Anda o Homem há milhões de anos a somar córtex cerebral, para no fim do século XX o Silva ser pior que um animal – “Violência” – Fúria do Açúcar, 1997.

*Músico e embaixador do PLATAFORMA

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