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Novo acordo entre China e Vaticano em Outubro cria divergências na própria Igreja

Marco Carvalho

O histórico acordo assinado há dois anos entre o Vaticano e a República Popular da China, que relançou o diálogo entre Pequim e a Santa Sé ao fim de quase 70 anos de divergência diplomática, continua a criar divisões no seio da Igreja Católica.

Roma já manifestou vontade de o prolongar. Para a Cúria Romana, o pacto assinado, a título provisório, a 22 de Setembro de 2018, reforça a autoridade do Papa e a unidade da própria Igreja, mas são muitas as vozes no seio daquela comunidade que continuam a disparar em sentido contrário. Para os críticos, o tratado deixa o Vaticano numa posição de subserviência face a Pequim e sujeita os católicos chineses ao risco, cada vez mais exacerbado, de perseguição.

O acordo “ad experimentum”, cujo conteúdo se mantém em grande medida em segredo, esgotou-se no dia em que completou dois anos, no início da semana passada, mas o Vaticano não perdeu tempo e anunciou a intenção de renovar as prerrogativas acordadas com as autoridades chinesas. O memorando, que poderá ser renovado já este mês, de- verá continuar a vigorar a título provisório, como sucedeu ao longo dos dois últimos anos, disse o cardeal Pietro Parolin, numa entrevista recentemente concedida ao jornal Corriere della Sera. A posição oficial chinesa ainda não foi tornada pública.

A “normalização da vida da Igreja na China”, adiantou o Secretário de Estado do Vaticano, continua a ser o principal desígnio do acordo, ainda que a par do reconhecimento, por parte da cúpula do Partido Comunista Chinês, da autoridade do Papa. O pacto permitiu que a Associação Católica Patriótica Chinesa selecionasse candidatos para a cátedra episcopal de várias dioceses chinesas, cujos nomes foram depois submetidos a aprovação papal. A nomeação de novos bispos, defende o sinólogo Francesco Sisci, deverá continuar a ser um aspeto central do acordo. Antigo correspondente da agência ANSA em Pequim, o investigador da Universidade Renmin refuta as críticas de que o memorando é alvo e lembra que, pela primeira vez em mais de meio século, a China e o papado contemplam um horizonte comum.

“Os resultados não foram “extraordinários, mas houve pontos positivos que emergiram do acordo. Sete bispos que foram nomeados pelo Papa foram reconhecidos por Pequim e dois novos bispos foram escolhidos por acordo entre as duas partes. Mas, mais importante, é que “pela primeira vez em 70 anos, os Católicos na China estão em comunhão com o Papa e as clivagens estão a ser sanadas”, defende Sisci. “Por fim, e em relação ao futuro, a escolha de novos bispos em cerca de 40 dioceses está a ser discutida e negociada e seria uma loucura parar essas discussões neste momento, até porque há alguns resultados a ser produzidos”, esclarece o académico italiano, em declarações ao PLATAFORMA.

Professor de Ciência Política na Universidade de Notre Dame, Peter Moody não contesta os ganhos decorrentes do acordo, mas defende que o enigmático pacto teve o condão de enredar o Vaticano num manto de ilusões. Especialista em política chinesa, Moody sustenta que a Cúria Romana continua a fazer vista grossa à perseguição de que são alvo tanto os católicos chineses, como os membros de outras confissões religiosas: “A linha oficial da Santa Sé parece ser a de que o objetivo do acordo passa por reforçar a reconciliação entre a chamada Igreja patriótica e as comunidades clandestinas, ainda que o que pareça é que exacerbou ainda mais as diferenças entre elas. Um outro fator – e que provavelmente não está relaciona- do diretamente com o acordo – é que a liberdade de ambas as comunidades – e de outros grupos religiosos, em termos gerais – está cada vez mais restringida”, assume o académico.

O professor emérito da Universidade de Notre Dame – uma universidade católica norte-americana vinculada à Congregação de Santa Cruz – entende que o acordo pode ter tido, original- mente, uma natureza profilática. “Um eventual motivo para a assinatura do acordo original pode, muito possivelmente ter sido a perceção, a meu ver correta, de que as coisas estão inexoravelmente a piorar para os crentes chineses e o acordo pode muito bem ter impedido que o cenário se tornasse ainda muito pior, ainda que não haja provas que possam corroborar esta hipótese”, salienta Peter Moody. “Se eventualmente o Vaticano se retirasse do acordo, estaria muito provavelmente a providenciar uma desculpa para um aumento da repressão a que estão sujeitos os Católicos chineses. Como diz o ditado, assim que se monta um tigre, o mais difícil é sair”, arrisca o autor de “Conservative Thought in Contemporary China”.

Cardeal Joseph Zen, ex-bispo de Hong Kong um forte opositor à interferência do Governo chinês nas decisões da igreja e contra a repressão aos católicos

DE BOAS INTENÇÕES…

A perceção de que os episódios de perseguição de que são vítimas os católicos na República Popular da China se terão aparentemente multiplicado desde que o acordo entre a Santa Sé e o Vaticano foi assinado é um dos principais argumentos dos que criticam a leniência da Santa Sé, mas não é o único. Os críticos da Cúria Romana – o cardeal emérito de Hong Kong, Joseph Zen, tem sido um dos mais vocais – dizem-se estupefactos com o silêncio do Papa Francisco sobre os alegados abusos dos direitos humanos perpetrados pelas autoridades chinesas em regiões como Hong Kong, o Tibete ou Xinjiang. Para o padre Bernardo Cervellera, sacerdote e editor da agência noticiosa AsiaNews, o acordo transformou os católicos chineses, clandestinos ou não, em alvos. “O acordo, apesar de quase não ter gerado qualquer fruto, constitui uma pequena ligação com a China, que a Santa Sé gostaria de ver alargada”, reconhece o também missionário do Pontifício Instituto para as Missões Estrangeiras. “Mas o que o Secretário de Estado Mike Pompeo disse sobre a falta de liberdade religiosa na China depois de o acordo ter sido assinado é verdadeiro e temos documentado esta questão quase todos os dias [no portal noticioso AsiaNews]. O Governo chinês está a fazer uso do acordo para esmagar as comunidades católicas na China, sejam elas oficiais ou clandestinas”, sustenta Bernardo Cervellera, numa resposta por escrito ao PLATAFORMA.

O editor da agência noticiosa Asia- News refere-se a um texto assinado por Mike Pompeo e publicado pelo Secretário de Estado norte-americano na revista First Things, uma publicação conservado e de natureza religiosa, na qual o governante defende que o Vaticano coloca em perigo a respetiva autoridade moral ao renovar o acordo com a República Popular da China.

Mike Pompeo deslocou-se esta semana a Itália, mas não vai foi recebido pelo Papa Francisco na Basílica de São Pedro. O Pontífice alegou que um eventual encontro poderia interferir na campanha eleitoral para as eleições presidenciais norte-americanas de 3 de Novembro, mas a decisão do líder máximo da Igreja Católica surge numa altura em que Washington criticou abertamente a abordagem da Santa Sé a Pequim. Para Paolo Affatato, editor da agência noticiosa Fides para as questões asiáticas, a posição dos Estados Unidos da América não é propriamente inesperada. “Os Estados Unidos da América não gostam do acordo porque, do ponto de vista geopolítico, consideram-no um favor feito à China e porque, no âmbito des- te confronto global, não consideram que este passo seja vantajoso para eles. Mas o Vaticano não é ́um dos poderes do Ocidente ́, como muitos gostariam que fosse”, assume Affatato.

O analista, que falou ao PLATAFORMA a título particular, está convicto de que a renovação do acordo agrada tanto aos católicos chineses como à hierarquia da Igreja Católica na Chi- na e defende que o Vaticano se deve distanciar o mais possível de tudo o que possa colocar em causa a sua in- dependência espiritual. “A fé Católica é universal. É exatamente esse o significado da palavra ́católico ́. Não é uma prerrogativa ou ́um braço ́ ao serviço dos poderes Ocidentais. A Santa Sé trabalha para desarmar qualquer conflito de natureza religiosa ou de qualquer outra natureza. Basta ver como esta estratégia está a funcionar no relacionamento com o Islão, ainda que muitos estejam desejosos de um confronto de civilizações”, ilustra o especialista italiano. “Por outro lado, um acordo de natureza religiosa não deve ser instrumentalizado e não deve assumir peso e importância política e geopolítica”, remata.

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