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A soberba

João MeloJoão Melo*

Numa notícia aqui publicada, uma jovem nascida no Dubai, filha de refugiados palestinianos, empreendeu uma longa jornada burocrática em busca da sua identidade.

A viagem através dos pontos no espaço-tempo levou-a até 600 anos no passado, tendo descoberto que a sua família islâmica tinha afinal uma linhagem de sangue sefardita, os judeus da península Ibérica…

Infelizmente a humanidade tem uma fraca noção de grandeza, o que conquistou em espaço perdeu em tempo. Hoje estamos informados acerca dos tamanhos da Terra e do universo, conhecemos inclusivamente dimensões virtuais, mas vivemos o quotidiano focados em exclusivo no tempo do momento, sem consciência de onde viemos nem para onde vamos. Carl Sagan, emérito astrofísico, concebeu um curioso calendário onde explicava que se a existência do mundo desde o Big Bang fosse condensada num ano, a Terra ter-se-ia formado a 14 de Setembro, a vida teria surgido a 25 de Setembro, o sexo foi ‘inventado’ pelos microrganismos a 1 de Novembro, e as plantas fotossintéticas brotaram a 12 de Novembro; os dinossauros vieram na véspera de Natal, os humanos iniciaram a caminhada sobre a Terra no dia 31 de Dezembro pelas 22:30h! A primeira civilização conhecida, a Suméria, apareceu às 23 horas 59 minutos e 50 segundos. Abraão nasceu às 23 horas 59 minutos e 53 segundos, Buda nasceu 2 segundos depois, Cristo um segundo depois de Buda, e Maomé um segundo depois de Cristo. Faltava um segundo para o réveillon quando despontou o Renascimento na Europa e Colombo chegou à América. Do século XV até agora vivemos nesse segundo, ou seja, desde a descoberta da América, e a formação do ramo familiar da jovem palestiniana, o que fez o universo? Piscou um olho… No ano cósmico, os dinossauros reinando 200 milhões de anos sobre a Terra viveram 4 dias; o homo sapiens existe só há uma hora e meia. Todos os feitos mais notáveis da humanidade, a partir da primeira civilização, aconteceram nos últimos 10 segundos do ano. No livro da história universal os humanos serão uma nota de rodapé, no entanto presumimos ser o tema central da obra.

A estrada em direcção ao conhecimento torna-nos cada vez mais humildes perante o universo, e naturalmente diluirá a tendência para a soberba, um dos maiores cancros do espírito humano

Já na cronologia corrente o Império chinês durou 36 séculos, o egípcio mais de 30, Bizâncio 12, Roma 5 séculos; Napoleão reinou na Europa por 10 anos, Hitler por 6. Todos acabaram e todos os que existem neste instante se extinguirão um dia. Uns são memórias transmitidas através de símbolos e ritos, outros metamorfosearam-se, e todos ajudam a entendermo-nos enquanto espécie. Nesta ou noutra moldura temporal, a característica mais fútil do ser humano sempre foi a soberba. Quer seja material, espiritual ou intelectual, a soberba é efémera, pouco importa se é singular ou grupal, se domina uma grande área, se dura um ano ou um milénio; o tempo, o ódio, os grandes cataclismos ou os seres mais microscópicos encarregar-se-ão de a destruir.

As divisões entre as pessoas são criações artificiais, servindo interesses instalados numa dada altura. A crença na superioridade de um grupo e subsequente manipulação da soberba mobiliza conflitos que, quando vistos à distância, soam ridículos. Curiosamente quem menos procura conhecimento é quem mais tem certezas. Esta jovem não se conformava com o presente, por isso necessitou de ir ao passado para encontrar o rumo do futuro. Descobriu quão falíveis são os dogmas instituídos pelos poderes vigentes que construíram a sua realidade. Talvez viva mais tranquila no futuro com a intranquilidade de saber que tudo é incerto e se interliga, todos somos partes do todo. Aceitar a incerteza da vida estimula a liberdade, a criatividade, a solidariedade, o amor, como formas de aliviar a angústia existencial. Se genuinamente incorporarmos estes valores, as religiões, que têm servido para nos dividir, irão unir-nos, ou melhor, deixar de servir para coisa alguma. A estrada em direcção ao conhecimento torna-nos cada vez mais humildes perante o universo, e naturalmente diluirá a tendência para a soberba, um dos maiores cancros do espírito humano.

*Músico e embaixador do PLATAFORMA

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