Dilema

por Filipa Rodrigues
Ricardo Oliveira DuarteRicardo Oliveira Duarte*

Passaram quase seis meses (menos três dias) desde que aterrei em Salvador da Bahia, no último voo direto vindo de Lisboa. Escrevo e só à medida que junto as letras é que me bate: é meio ano. É meio ano, porra! 

As reuniões que tive nos dias antes de a decretada pandemia me ter empurrado antecipadamente para dentro do avião desapareceram como se nunca tivessem acontecido. Planos de muitas horas dissolveram-se qual algodão doce, derretidos por um vírus que parece saliva em açúcar. Mas olhando com os olhos de hoje isso é pouco ou nada relevante. Felizmente, muito felizmente, esse vírus nunca bateu a uma porta muito próxima, poupou-me ao que, imagino, seja do mais doloroso que possa existir em termos de adeus: a ausência. Milhares (milhões?) morreram sozinhos. Sem um último beijo de conforto, um apertar carinhoso de mão, uma festa, um “até já” ou “descansa”. Só de pensar dói. E, no entanto, aprendemos, tivemos de aprender porque a alternativa era ensandecer, a viver com notícias de mil mortes por dia, até chegarmos, aqui no Brasil, ao absurdo de mais de 132 mil vidas perdidas.

Vivendo na bolha do privilégio de quem não só não precisou de sair de casa para sobreviver como ainda pôde disfrutar da desaceleração global os dias foram-se unindo em fases. A descoberta da vida nova, com tempo para supostamente tudo, mas feita tantas vezes de quase nada feito. Morreram vários velhos projetos e demoraram a nascer novos. Nessa fase de reconstrução o calendário virou alguns meses. Semanas com várias corridas intercaladas com outras só de sofá. Internet, Internet e Internet.

Ao mesmo tempo, milhares de pessoas não conseguiram, pelos mais variados motivos, parar de trabalhar para cuidar dos seus e de si. Milhares, ainda e sempre, continuaram a encher os poucos autocarros que circulavam nas cidades, tantas vezes para servir os mais endinheirados que se recusaram a ver o evidente poder destrutivo do vírus. Só lhes caiu a ficha quando tocou no bolso. Ou nem aí. Os “cidadãos de bem” que se consideraram acima de uma “gripezinha”, mas depois foram cair de bruços aos braços de um ventilador da mesma maneira que todos os outros, os não atletas, os mais novos e menos crentes no poder salvador da religião.

Os pensamentos de um Mundo melhor pós tudo isto poderiam muito bem ter morrido, por aqui, passados poucos meses do início da pandemia aos pés da corrupção que se aproveitou da forma mais velhaca e grotesca de ser bandido: lucrar e enganar durante uma situação de calamidade, desviar dinheiro que custou direta e indiretamente milhares de vidas. A esperança nesse tal Mundo melhor poderia, mas não poderá morrer. Afinal, tantos foram também os exemplos do extremo oposto, de amor ao próximo, altruísmo, abnegação. Quantas vidas foram salvas por profissionais de saúde, voluntários, amigos, vizinhos, anónimos e conhecidos? Milhares (milhões?).

Despencou a economia, trepou o desemprego. A desigualdade agigantou-se. Por entre os incêndios nos dois pulmões do país (Pantanal e Amazónia) é raro o ar da Democracia, que é como quem diz que ela respira mal, e agora até o arroz está histórica, e factualmente, caro. Não está fácil sorrir, mas talvez seja chegada a hora de definitivamente começar a olhar para o outro lado de tudo isto. E aqui é que o título deste texto ganha expressão e algum sentido.

Bares e restaurantes cheios de gente sem noção ou máscara, festas recheadas de amigos em casa ou praias a abarrotar com pouca ou nenhuma distância podem até ajudar a economia a dar uma pequena prova de vida e reduzir a ansiedade que o isolamento pode provocar, mas quantos novos infetados vão daí resultar? Não vamos acabar todos por perder muito mais que ganhar esses pequenos e absurdos respiros? Não é por estarmos nisto há seis meses ou por agora morrerem em média mais de 700 pessoas por dia quando há pouco tempo eram mais de mil que tudo passou. A pandemia não acabou. Mas e se deixássemos entrar o bom senso aí no meio? Hoje sabemos incomparavelmente mais do que sabíamos há uns meses. Sabemos que se usarmos máscara e lavarmos muito mais vezes as mãos, se mantivermos uma distância de pelo menos dois metros e estivermos em espaços arejados reduzimos bastante a probabilidade de propagação do vírus. Então, talvez seja chegada a hora de começar a ir ao restaurante ou bar que cumpre as regras e assim ajudar o dono e os funcionários. Máscara, álcool, lista digital e distância das mesas. Talvez seja a hora de poder assistir a um concerto ou teatro, sentados e com metade da lotação do espaço, ao ar livre, assim permitindo que os artistas e os técnicos voltem ao palco. Talvez seja até a hora de podermos voltar a, com setores de bancadas fechados, muita fiscalização, ter público no futebol.

Tudo muito devagar, muito fiscalizado pelas autoridades, muito monitorizado, tudo aberto a recuar e fechar ao mínimo sinal de aumento de casos de infeção. Se tudo for transparente e civilizado talvez seja a hora de começarmos, devagar e com consciência, a voltar a sair e procurar uma normalidade onde hoje há apenas estranheza e incerteza. Talvez.

*Jornalista  

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