Crónicas do reino – A festa

por Guilherme Rego
João MeloJoão Melo*

Marcelus I era um rei bastante dado à res publica. Em celebrações ou catástrofes apresentava-se sempre acompanhado de um batalhão de cronistas.

Tantas foram as suas aparições em cerimónias oficiais e simples acções como cortar o cabelo ou comprar iogurtes, que eliminara o propósito de aparecer alguém a apontar “o rei vai nu”. De facto os súbditos estavam sobejamente familiarizados com as suas mamas e pilosidades peitorais, no Verão apenas um pedaço de pano nas zonas baixas o separava da nudez total. Fora aclamado por unanimidade há um quadriénio sem ter gasto um ducado na campanha, afinal já nessa altura o povo o conhecia de ginjeira, através do mesmo púlpito que outro Marcelus usara nos idos de 70. Curiosamente a única coisa de que nunca falou foi sobre a re-aclamação em Janeiro.

É indiferente, para bom entendedor meia selfie basta, sentindo-se no afã estival um aroma a pré-campanha. Contudo isto não passaria de calor do momento; os próximos tempos serão dos mais duros da História, ele sabe disso, não vai para novo, e estes pontos apresentavam-se como o maior óbice aos planos de um reinado que antes da pandemia projectara estenderem-se tranquilamente por oito. Julgou desfrutá-los sem grandes chatices, agora percebe que enfrentará problemas graves. “Cuidado com o que desejas porque podes conseguir” é um dito que resume a primeira parte do reinado.

A tão almejada unanimidade tornou-se na maior inimiga. Esterilizou alternativas, nem os adversários das águas onde navega se atrevem a apresentar candidatos, parecerão quixotescos. O desafio, o seu maior vício, virá de duas fontes: 1- de Venturus, um político que se chegou à frente afirmando pretender destruir o reino, e 2- da eventualidade de um rei fraco poder ocupar o trono no período mais crítico dos últimos 80 anos. Finalmente renunciará à boa vida, abraçando a missão com sacrifício. O povo nem sonha o quanto isso lhe custa mas não chorem, ele sabe aligeirar o fardo. 

Antonius era o primeiro-ministro de Marcelus I, e se por um lado o rei lhe invejava os desafios, por outro não lhe gabava a presente sorte. Antonius fora eleito sem maioria absoluta sendo obrigado a congeminar uma geringonça voadora sobre o primeiro mandato que em termos de eficácia empalideceria a passarola de Gusmão. No segundo viu-se sem o tal aparato, só que os líderes partidários da zona infravermelha iam-lhe dando a mão ajudando-o a voar, interessados em não assistirem a voos de líderes da zona ultravioleta. Encabeçando o espantoso Mistério das Finanças, o super-ministro Centenus conseguiu durante a anterior legislatura lavrar um conto de fadas, porém não mais sustentável. De tal forma que Antonius, um incorrigível optimista, recentemente assumiu encontrar-se o reino à beira de uma terrível crise.

Precisando de apoio do espectro infravermelho para aprovar o orçamento, Antonius anda nervoso, ameaçando demitir-se caso não o validem, uma perspectiva que assusta todo o espectro cromático, até o rei. Logicamente Marcelus I falaria do assunto, fala aliás de tudo, e notou-se o seu receio ao tentar passar a ideia de que não está receoso, “fazendo peito” ao sublinhar que quem manda é ele.

Toda a gente sabe que não manda coisa alguma, é simplesmente o árbitro, todos sabem igualmente que perderão, excepto o Venturus, o único beneficiário do caos. Neste contexto surgiu uma oportunidade, e o espírito vivo de Antonius não a enjeitou, não enjeita nenhuma. Às portas do Outono Jeronimus costuma organizar uma festa, aparentemente essencial à sobrevivência económica do seu partido; se hoje tem uns tristes dez deputados, mais dois do satélite, a URSS faliu, a China é capitalista e ódio de estimação, onde arranjaria dinheiro para sobreviver, na Coreia do Norte?

A não realização implicaria um desastre financeiro, debilitando a força de um aliado incómodo para Antonius, ainda assim aliado, contrariamente às forças do espectro ultravioleta. Por isso, em choque com a opinião pública e a evidente deterioração da imagem do governo, Antonius permite que Jeronimus faça a sua festinha. O povo não percebe que não se trata de amor, é uma convergência das necessidades de cada um.

Antevendo a possibilidade de fragilizar um adversário, quiçá fatalmente, os outros partidos espernearam. Jeronimus, irredutível, manterá a pose fazendo o seu papel, discordando de tudo… e abstendo-se no dia D. Após metê-lo no bolso Antonius lembra aos restantes aliados as mútuas vantagens em não lhe cortarem as asas; a seguir esperará que a patine do tempo cubra esta incómoda nódoa, a autorização da festa.

Não teve o mínimo prazer nisso, compreendam, foi mera conveniência. O subtexto é “ok, ainda brincamos um bocadinho, aproveitem, uma vez que depois do dia 15 é a sério, não há mais pão p’ra malucos”. Todavia a mensagem possui várias camadas, não se dirige exclusivamente aos acólitos de Jeronimus: tempos muito difíceis vêm aí para todos, excepto para o Venturus, claro.

*Músico e embaixador do PLATAFORMA

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