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Fado versus enfado

João MeloJoão Melo*

Assumo: excluindo a Amália apenas consigo ouvir um ou dois fados por trimestre, talvez uma sensação semelhante à que favas guisadas provocam a certas pessoas. Antigamente o fado cheirava mal, era pobre e sujo, à laia de carapau embrulhado numa folha do Diário Popular, em que o sangue do peixe tingia as notícias, e a tinta negra das impressoras do Bairro Alto borrava as mãos. As letras versavam sobre marialvas e desgraçados, santos e sacrifícios, paixões e facadas, sexo canalha, filhos da puta que meteram os cornos, e cantava-se nos guetos. As intérpretes pautavam-se por níveis de testosterona mais elevados que eles, verdade seja dita, mais elevados que um gorila no cio, envergavam vestes funerárias da cabeça aos pés, possuíam um tórax do tamanho de um barril, e as vozes marinadas pelo conteúdo do mesmo, geralmente carrascão do Cartaxo. As marcas de tinturas na pele que alguns tinham resumiam-se a pequenas garatujas monocromáticas, memórias de estadias nas Mónicas ou no Linhó. Fora as referências ao amor de mãe nas colónias, essas marcas eram vergonhas que discretamente se ocultavam. 

Agora o fado cheira a velas aromáticas, está em qualquer lounge cafe decorado a papel de parede às riscas e sofás de design, ouve-se entre chás exóticos e fondues de frutas com chocolate. Os temas tentam expressar sentimentos de amor budista, jovens que adquiriram a primeira casa, OVNIS, enfim do que se quiser desde que seja cool. Os intérpretes orgulhosamente exibem tatuagens de variadas origens culturais, símbolos de vacuidade existencial excepto para o próprio, praticam yoga no camarim, e antes de cantar gargarejam delicadas tisanas à base de água Evian. Eles têm níveis mais altos de estrogénio que elas, há sempre no grupo um puto fixe de rabo de cavalo que toca contrabaixo, e embora não confesse preferia estar “noutra cena”, mas enquanto der para curtir tournées no estrangeiro ganha a vida num projecto inovador que aborda o fado a partir de novas perspectivas, cruzando linguagens musicais diversas… e… e… Chiça, pára, chavalo! Estes “projectos” sabem a salmão de viveiro acompanhado de legumes ultracongelados e regados a Lambrusco: o peixe é cor-de-rosa, nunca lhe vi o sangue, os legumes gozam de um tamanho estranhamente formatado, e o vinho é doce às bolhinhas internacionais, podia ser de Tóquio, Paris, Nova Iorque… O de cá tem guitarras e uma voz arrastada em português, logo chamam-lhe fado.

No fado à antiga “guitarra” esbarra fatalmente numa “forma bizarra”, a única rima conhecida para o instrumento. Nas paredes das catacumbas onde se celebra este cantochão religioso expõe-se um panteão amarelecido de fadistas dos quais nunca ouvi falar. Aí o fado é cantado pelos Alfredos e Cajós de capachinho e cachucho no mindinho, as Hermínias e Cesaltinas compenetradas de olhos fechados, e ainda bem, porque basta fitarem-me para me fulminarem, a maquilhagem já assusta, ou então pelas novas Sandras de tules dos chineses, e os Rubens de sapatos de verniz que vão surgindo nas inenarráveis noites do fado. Não obstante prefiro isto, inspira menos terror à partida; se fosse amarrado a uma cadeira tipo “Laranja Mecânica” e obrigado a gramar um festival de gaitas de foles, uma maratona de axé, que julgo ser a designação daquela tortura brasileira rodando à volta de 3 acordes sob vozes a mandar ir para cima, para baixo, e a meter a mão na bundinha, ou assistir ao petulante vazio do novo fado, aí sim, o meu cérebro fundia.   

Quem se lembra dos fadistas de nobreza falida trinando alegremente quais rouxinóis, apesar do conteúdo da letra sugerir o tom oposto, “tive um cavalo ruço que eu sentia como um bom irmão – foi um touro que o matou num dia de infelicidade”? Ah, a saudade de usufruir dos prazeres do selim e da mulher… No entanto a classe de fadistas minha preferida é a da Maria José de Jesus, o sagrado agregado familiar reunido num só nome, que para cantar uma história, por mais banal que seja, arranca o fígado e põe-no em cima da mesa; não havia necessidade, e é isso que a torna interessante. Se for homem, prefiro o “Litó”. O que o Litó espera do público é que esteja calado, pá, e aplauda no fim, chega; de resto quem não ábessi árfali ãocali (sabe falar calão)nem lhe merece grande respeito. Bebe vinho antes, durante, e depois de cantar, fuma SG Ventil, gala as camones, porém se uma vizinha o topar e se chibar à Céu – a mulher – nessa noite haverá caldeirada: apanha de esguelha com um tacho no focinho e amocha; por muito inocente que se finja, sabe a merda que fez. Se querem ouvir o Litó vão a Alfama, ele não canta para ninguém fora do bairro. Então o fadista é que anda atrás do público? ‘Tá tudo doido… Para o Litó “palco” é a Taberna do Embuçado ou a Parreirinha de Alfama, “Olympia” eram sessões contínuas ali ao Coliseu. Durante uns meses desapareceu de circulação depois de numa noite ter chinado dois marinheiros ingleses que alegadamente “olharam” para a Céu. Às vezes vai ao Parque Mayer ver uma revista, contudo nunca aceitaria cantar numa; não tem nada contra, cada um leva onde quiser, mas trabalhar num meio de abafa-palhinhas não, obrigado, tem medo “que se pegue”. Faz 25 anos que o Litó gravou pela única vez, quando o fado não era moda; aliás, os artistas pop que cresceram a cantar Whitney Houston, Mariah Carrey, Dulce Pontes ou Michael Bublé nos karaokes e viraram fadistas achavam este género musical uma foleirice. A custo convenci-o a ir a um estúdio na Encarnação, paguei o táx e o jantar; à sua espera estavam instrumentistas “a sério”, ou seja, machos de bigode a tocar guitarra e violas, sem contrabaixos, percussões ou outras palhaçadas. Cantou ao vivo frente a uma pequena assistência, e até hoje o dono do estúdio ainda não encontrou o relógio e a carteira.

*Músico e Embaixador do Plataforma

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