Memórias da cidade

por Filipa Rodrigues
Marco Carvalho

É uma das hipóteses com que os historiadores se debatem: as autoridades chinesas terão permitido que os portugueses se fixassem no delta do Rio da Pérola por causa da ajuda dada pelas embarcações lusas no combate a uma frota de piratas japoneses que aterrorizava a costa meridional da China. A possibilidade divide os investigadores, mas há outros aspectos que são consensuais. Sem a ação de sucessivas levas de piratas, Macau dificilmente seria o que é hoje.

Se não os consegues vencer, junta-te a eles. Ou faz, pelo menos, com que eles se juntem a ti. A estratégia foi amplamente promovida pela dinastia Qing durante grande parte do século XIX para manter sob controlo as vastas legiões de piratas que durante séculos a fio fizeram do Mar do Sul da China um dos mais perigosos do mundo.

Cheung Po Tsai – que inscreveu o nome a sangue e a pólvora nos anais da história de Portugal a Oriente – é o exemplo mais sonante de um longo rol de delinquentes que, de “terror dos mares”, se transformaram por beneplácito imperial em influentes líderes navais. Após a derrota na batalha da Boca do Tigre (Fevereiro de 1809 a Janeiro de 1810) às mãos de uma flotilha de navios portugueses, ingleses e chineses, Cheung – designado por Cam Pau Sai nas crónicas lusas da altura – conseguiu uma rendição negociada, entregando-se aos representantes das autoridades imperiais chinesas em troca de uma vantajosa amnistia. De líder de uma frota de transgressores e marginais que no auge chegou a agrupar, entre lorchas e juncos, mais de meio milhar de embarcações, Cheung passou a partir de 1810 a ocupar o posto de mandarim e conselheiro da corte imperial e a comandar, com o estatuto de coronel, a frota da Armada chinesa responsável por policiar as ilhas Penghu, a meio termo entre a China e Taiwan.

Cam Pau Sai e a consorte, Ching Shih, foram duas das figuras de proa de um fenómeno que, para o bem e para o mal, ajudou a moldar a história de Macau ao longo de cinco séculos, turvando algumas vezes a relação entre chineses e portugueses e outras consolidando-as.

A pirataria e o impacto que teve na região do Delta do Rio da Pérola dá o mote a uma exposição que está desde esta quarta-feira patente ao público no Arquivo Histórico de Macau. A mostra – que reúne mais de uma centena de documentos, mapas e fotografias – propõe-se “despertar o interesse do público e dos especialistas pelo estudo e pela investigação sobre este tema e dar conta das diferentes dimensões do fenómeno da pirataria como prática social no âmbito de um sistema político económico, social e cultural muito mais amplo”, explica o Instituto Cultural, numa nota de imprensa.

Intitulada “Piratas nos Mares de Macau (1854-1935), a exposição aborda as práticas de pirataria na segunda metade do século XIX, período em que as atividades dos piratas atingem, em grande medida, o apogeu, mas o fenómeno é bem mais antigo e não deixou os navegadores portugueses indiferentes, como explica o investigador João Guedes: “A pirataria é anterior ainda à chegada dos portugueses. Ao contrário do que possa parecer, o Mar do Sul da China era o equivalente ao Mediterrâneo. O comércio era uma coisa brutal”, afirma. “A pirataria fazia-se porque esse comércio era valiosíssimo e os piratas faziam parte da equação. Quando os portugueses se fixam em Macau, os principais piratas eram japoneses. As primeiras descrições de Macau são feitas por Fernão Mendes Pinto e o próprio Mendes Pinto, na “Peregrinação”, descreve uma figura, que se chamava António de Faria, que por aqui andava e se dedicava ao corso”, complementa o antigo jornalista da Teledifusão de Macau, em declarações ao PLATAFORMA.

A canhoneira “Macau” em manobras ao largo de Coloane 

Antiga colega de trabalho de João Guedes na TDM, Ana Isabel Dias estudou a fundo a questão da pirataria no Mar do Sul da China no âmbito de uma dissertação de mestrado em História Moderna e Contemporânea. A jornalista defende na tese que a pirataria nas águas da China meridional se estruturou em três grandes levas, com protagonistas e contornos distintos, mas com um único objectivo em mente: “A pirataria tem tudo a ver com um sistema de negócio que está montado, de comércio marítimo, do lucrativo transporte de bens de um lado para o outro. Se não há lucro, não há piratas, de modo que eles são, antes de mais, ladrões e marginais, que atacam e que roubam e que têm um fito: a pilhagem e o lucro”, defende a profissional de TV.

Com um código de conduta por vezes draconiano, os piratas, não eram, ainda assim, meros bandoleiros ou salteadores. Numa região fustigada por frequentes convulsões internas, as frotas e organizações nas quais se agrupavam ofereciam por vezes, às populações costeiras o tipo de salvaguarda económica e social que as próprias autoridades não conseguiam garantir: “As federações de piratas tinham umas regras de organização muito próximas do crime organizado, tinham modos de funcionamento muito específicos, com regras muito rigorosas relativamente aos que infringiam os modelos de funcionamento a bordo. A pena capital, por exemplo, era um dos castigos mais aplicados aos piratas no Mar do Sul da China. Retirar dinheiro do fundo comum ou roubar aldeões que pagavam tributo em troca de proteção, por exemplo, era punido com a pena capital”, ilustra Ana Isabel Dias.

O facto de garantirem a proteção das populações a quem cobravam tributo – a exemplo do que é prática comum entre as seitas – e de serem, pelo menos em Macau, amplamente tolerados pelas autoridades locais, conferia aos piratas um estatuto particular, com tanto de ambíguo como de complexo: “Os mais fracos tinham a pata do Estado por cima e é por isso que nascem as seitas. As seitas no fundo são os institutos de defesa dos que não têm defesa, dos que o Estado não defende. E isto é uma coisa que vem desde esses tempos imemoriais, até aos dias de hoje. As seitas continuam hoje, alegadamente a defender, quem não se pode defender, com todos os problemas que isso acarreta”, sustenta João Guedes. “. O governador Álvaro de Melo Machado, quando termina a comissão de serviço em Macau, escreve um relatório muito interessante. O documento tem um capítulo dedicado aos piratas em que diz que estes estavam perfeitamente integrados na vida social de Macau. O que é que eles faziam aqui? O que eles faziam aqui era manter a paz, enquanto em Hong Kong isso nunca aconteceu. Em Hong Kong, a primeira atitude que as autoridades tinham era de confronto com seitas, piratas e tudo o mais”, remata o investigador.

Um problema do presente

Piratas, corsários, bucaneiros e flibusteiros aludem a um imaginário hollywoodesco, mas desenganem-se os que julgam que a pirataria está erradicada e que os piratas fazem parte do passado.

As ocorrências atualmente registadas são uma parcela ínfima dos ataques que ocorriam na idade de ouro do corso, mas a pirataria continua a deixar prejuízos e vítimas um pouco por todo o mundo. Nos seis anos que antecederam a conclusão, em 2005, da tese de mestrado de Ana Isabel Dias, os ataques perpetrados por piratas a embarcações da marinha mercante custaram a vida a mais de uma centena e meia de pessoas, de acordo com os dados da Organização Marítima Internacional: “Os ataques registados no Mar do Sul da China entre 1998 e 2003 custaram a vida a 161 pessoas, outras 308 ficaram feridas e 102 desapareceram. Entre 1991 e 2001, foram registados 2375 ataques e assaltos a embarcações”, adianta a jornalista.

Ao longo das últimas duas décadas, o recurso a tecnologia de satélite e o reforço do policiamento nas principais rotas marítimas internacionais ajudaram a reduzir o número de ocorrências, mas a pirataria marítima está longe de ser uma memória. Em 2019, o Gabinete Marítimo Internacional – uma entidade marítima com sede em Kuala Lumpur – registou 119 episódios de pirataria ou de assaltos armados contra embarcações. O número esconde uma queda ligeira face aos 156 incidentes registados em 2018. No ano passado, 95 navios foram abordados por outras tripulações, dez foram alvo de ataques com armas de fogo e quatro embarcações foram sequestradas. O número de tripulantes raptados caiu dos 112 nos primeiros nove meses de 2018, para os 49 no período homólogo de 2019, ainda que os raptos registados ao largo da costa ocidental africana tenham subido 50 por cento nos doze meses do ano passado.

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