“As circunstâncias podem levar ao descontentamento social e a protestos”

por Filipa Rodrigues
Catarina Brites Soares

O alerta é do sociólogo Spencer Li, que liderou o que diz ser o primeiro estudo que faz um retrato social da região. O académico do departamento de Sociologia da Universidade de Macau considera que a estabilidade pode sofrer se a pandemia tardar. A ausência de oportunidades para os jovens, avisa, pode ser um problema.

– Quais foram as principais conclusões do estudo?
Spencer Li – Macau é uma sociedade próspera e estável, com um nível salarial bastante alto, quando comparada com regiões vizinhas e, em particular, com a China. Tem um bom sistema de apoio social. A pobreza, até ao fim dos inquéritos, era bastante baixa. No que respeita às famílias, parece haver estabilidade. Os casamentos são duradouros, há uma taxa bastante baixa de divórcios, o que é raro numa sociedade desenvolvida. As pessoas sentem-se bem, sob o ponto de vista físico e mental. No que respeita à identidade, a maioria sente-se igualmente identificada com Macau e a China. Não existe uma rejeição ao Continente, como em Hong Kong. Também concluímos que a população é bastante aberta a outros grupos étnicos ainda que haja preconceitos contra grupos marginais.

– Quais foram as conclusões que mais o surpreenderam?
S.L. – A estrutura familiar. Apesar de Macau ser pequena, é desenvolvida. Há um elevado nível de vida, diversas culturas e religiões. O expectável seria haver muitos divórcios e segundos casamentos, mas não é o caso. A maioria é casada, e tende a ficar casada durante bastante tempo, 20 anos, às vezes mais, e a taxa de divórcio é bastante baixa. Depois, a questão da pobreza. Trinta por cento da população aufere menos que quatro mil patacas, o que é muito baixo. Claro que estes dados têm de ser qualificados. O estudo abrange indivíduos dos 16 até aos 100 anos, inclui estudantes e idosos cujo rendimento não existe ou é baixo porque não trabalham. 

– Que explicação encontra para a reduzida taxa de divórcios?
S. L. – Pode estar relacionado com o nível de educação, que é relativamente baixo, e essa é outra surpresa. Quanto mais qualificada é a população, mais tarde se casa, porque se foca na carreira, e mais autonomia tem, porque recebe um bom salário. Em Macau, ainda não atingimos o ponto em que as mulheres são independentes. A questão cultural também terá influência. Cerca de 90 por cento da população vem da China. A tradição chinesa apela à harmonia e à união familiar, sobretudo quando há filhos. 

– O fosso social foi um dos temas da investigação. Considera que a agudizar-se poderá levar a um nível de insatisfação como em Hong Kong?
S.L. – Macau tem uma classe média estável e uma taxa de desemprego muito baixa, o que contribui muito para a estabilidade. Com ou sem qualificações, o nível salarial é alto e é fácil encontrar emprego. No nosso estudo, também incluímos emigrantes. É preciso olhar para estes grupos mais marginalizados e que podem estar numa situação frágil em termos laborais. O que é importante perceber é que a insatisfação social por vezes surge de um sentimento de desequilíbrio, mesmo que as pessoas vivam bem. Ou seja, se eu ganho dois mil e o meu vizinho dois milhões, há a perceção de injustiça. A desigualdade social pode ser um problema, especialmente quando os jovens sentem que, apesar das qualificações, não há mobilidade social e possibilidade de terem uma vida decente. Se a juventude sentir que não tem oportunidades, pode ser um problema.

– Como justifica o nível de educação baixo atendendo à boa condição salarial e aos inúmeros apoios públicos para estudar, como bolsas?
S.L. – Historicamente, há uma migração da China para Macau de pessoas pouco qualificadas. Tinham dinheiro e conseguiram o direito à residência através de investimento. No que respeita às gerações mais novas, é diferente. Aparentemente, não há motivos para não estudarem, mas para haver motivação – que creio que há porque muitos dos meus alunos acumulam trabalhos para pagarem os estudos – é preciso sentir que compensa. Mais qualificações devia significar mais oportunidades e melhores salários. Não é o que acontece em Macau. O destino acaba por ser sempre um casino ou o setor hoteleiro. 

– Que impacto poderá ter a Grande Baía?
S.L. – Por enquanto, não passa de uma ideia. Ainda não há nada muito concreto. Se houver as tais zonas especiais para empresários locais, talvez possa ter relevância. 

– Como se pode inverter a ausência de oportunidades se, como referiu, a economia assenta na indústria do Jogo e isso não mudará tão cedo?
S.L. – Depender de um setor como acontece aqui, não é bom. Vimos o que sucedeu com a pandemia. Afetou toda gente porque sem turistas, não há receita. Essa dependência colocou a cidade numa situação bastante vulnerável. O Governo tem tentado diversificar, apesar de não vermos grandes resultados. 

– A que se refere?
S.L. – As indústrias criativas. É uma aposta do Governo. São negócios bastante lucrativos, apesar de ainda não se verem resultados. Diria que as indústrias de alta tecnologia são as que têm mais margem de crescimento e que tendem a criar mais oportunidades. Se o Governo investir nestas áreas, por exemplo em Hengqin ou em Guangdong, criando incubadoras, pode ser um caminho para a diversificação económica e um incentivo para se investir em educação.

– A identidade é outro dos temas do estudo. Refere que em Macau, as pessoas se sentem da região e da China. Surpreendeu-o?
S.L. – A população de Macau sente que tem uma espécie de dupla identidade. Para isso, poderá ter contribuído o princípio Um País, Dois Sistemas. O sistema acabou por criar essa ideia de identidade de Macau e de ligação ao Continente. 

– É um sentimento transversal?
S.L. – A maioria sente-se identificada com a China e com Macau, apesar de haver ligeiras diferenças. Os mais jovens, sobretudo os que nasceram depois da transição em 1999, sentem-se menos identificados com a China e mais identificados com Macau.

– Em termos de participação política, a investigação revela que os residentes optam por outras vias em vez das manifestações. É cultural ou medo?
S.L. – Vim para Macau em 2010, e nessa altura havia protestos. Agora, não vemos muitos ou mesmo nenhuns. Acho que os residentes estão bastante conformados. É uma sociedade tão pequena. Toda gente se conhece. Impera a mentalidade de querer fazer parte e o receio de divergir. 

– O que mudou face ao que acontecia em 2010?
S.L. – Por outro lado, Macau está a sair-se bastante bem, a economia tem crescido, há um sistema social forte, não há grandes motivos para insatisfação. O principal motivo de insatisfação dos inquiridos era a falta de qualidade dos transportes públicos, não foi a corrupção ou outro aspeto com fundamento político. Ao mesmo tempo, há muita homogeneidade, a maioria é chinesa. Os que querem intervir fazem-no através de associações, grupos de bairros. Há vários canais para os residentes dizerem o que pensam. Fui convidado para fóruns, como o da TDM, e há sempre pessoas que intervêm, mostram insatisfação com o Governo e que são bastante críticos, o que não vemos é protestos organizados contra o Executivo como acontecia no passado. Acho que o Governo tem vindo a desencorajar esse tipo de participação. 

– A estabilidade que fala pode ser afetada pelas consequências da pandemia?
S.L. – A maioria sofreu cortes salariais. Se a pandemia desaparecer cedo, a economia pode recuperar e provavelmente não será um problema. Senão, a vida será mais difícil e as circunstâncias podem levar ao descontentamento e a mais protestos. É completamente plausível.

– O estudo também revela que há um elevado nível de aceitação de outras comunidades.
S.L. – Em geral, as pessoas são recetivas a outros grupos, incluindo étnicos, como migrantes do Continente. Há mais preconceito sobretudo em relação a grupos com estilos de vida desviantes e pouco convencionais. Não é uma questão de nacionalidade. Há três grupos que são mais rejeitados pelos locais: toxicodependentes, alcoólicos e pessoas com SIDA. 

– Sobre a igualdade de género, parece haver consenso mas aprofundando o tema, ressalta ainda uma mentalidade contrária, correto?
S.L. – A maioria é apologista da igualdade de género, mas depois há 20 a 30 por cento que ainda tem uma mentalidade conservadora e machista. Perguntámos se os homens e mulheres deviam partilhar as tarefas domésticas, 94 por cento disse que sim. Mas também questionámos se a formação superior é mais importante para o homem do que para a mulher, e 30 por cento acha que é; 28 por cento concorda que os homens seriam melhores políticos; e 25 por cento acha que seriam melhores empresários. Outra pergunta foi se, em crise económica, se devia dispensar primeiro as mulheres, 19 por cento respondeu que sim. Ainda há uma percentagem considerável da população com uma atitude contra a igualdade de género. 

Resumo 

O inquérito, que decorreu entre 2016 e 2017, incluiu 2500 lares, e 3600 indivíduos, dos 16 anos aos 100. Mais de metade, 52,4 por cento, eram mulheres. As entrevistas serviram de base a uma investigação que faz o retrato social de Macau. O estudo foi publicado em livro, apenas em chinês, e é descrito pelo departamento como o primeiro do género na região.

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