A última travessia de um jovem sudanês que viu o asilo político recusado em França

por Rute Coelho

Hamdallah tinha 22 anos ou 28 consoante as fontes. Sem saber nadar, fez-se ao mar com um amigo num bote insuflável, a partir de Calais, com destino a Inglaterra via Canal da Mancha. Terão perfurado por acidente o bote com as pás que usaram por remos. O jovem sudanês sabia que podia ser a sua última viagem

O corpo de Hamdallah deu à costa na manhã de quarta-feira passada na praia de Sangatte, em Calais, norte de França, a poucos metros do ponto de partida daquela que foi a última viagem da sua vida. Teria 22 anos, segundo familiares contaram ao jornal britânico The Guardian, ou 28, de acordo com os documentos de identificação encontrados junto ao seu corpo. Tinha, isso sim, uma vida pela frente.

Tudo indica que Hamdallah pressentia que esta podia ser uma viagem sem retorno. Antes de partir, disse a um primo em Calais que este podia nunca mais o voltar a ver.

O jovem sudanês, que era também conhecido por Wajdi, decidiu atravessar o Canal da Mancha pelo seu ponto mais estreito, o Estreito de Dover, com destino a Inglaterra. Ele, que não sabia nadar, fez-se ao mar com um amigo a meio da noite de terça para quarta-feira. Os dois entraram num bote insuflável munidos de umas pás que serviriam de remos. Acidentalmente, perfuraram o bote com as pás. Hamadallah morreu afogado. O seu amigo, não se sabe como, sobreviveu e foi levado para o hospital com hipotermia.

A trágica morte de Hamdallah veio agravar as tensões entre a Grã-Bretanha e França quanto às respetivas políticas de asilo político a migrantes ou refugiados. O jovem sudanês vira o seu pedido de asilo político recusado em França recentemente e dispôs-se a arriscar a perigosa travessia de barco. Terá confidenciado à família que preferia arriscar do que voltar ao “horror” em que viveu no Sudão, contaram familiares seus ao The Guardian.

Originário do Kordofan Ocidental, um estado sudanês que faz fronteira com as áreas devastadas pela guerra de Darfur e das montanhas Nuba, Hamdallah fugiu do seu país em 2014. Segundo os seus familiares, ele passou dois anos na Líbia com o seu irmão mais velho antes de chegar a França via Itália .

O primo em segundo grau de Hamdallah, Al-Noor Mohammed, juntou-se a ele em Calais há menos de dois meses. “Crescemos juntos no Sudão. Ele só entrou neste barco por causa das autoridades francesas que não acreditaram na sua história”, contou o primo ao jornal britânico. “A última vez que o vi foi [na terça] à noite. Ele estava de bicicleta e disse que talvez não nos voltássemos a ver. Eu não acreditei nele, mas ele disse: ‘Vejo-te do outro lado’, que é o Reino Unido”.

Entretanto, França e Inglaterra trocam acusações em torno do caso. Um deputado francês atribuiu a tragédia à política do Reino Unido de insistir que os pedidos de asilo sejam feitos em solo britânico.

“Na palma da mão do destino caminhamos…”

O irmão mais velho do jovem, Al-Fatih Hamdallah, permanece na Líbia. Em declarações ao The Guardian a partir da capital líbia, Al-Fatih contou que os dois trabalhavam a lavar carros em Tripoli mas o seu irmão mais novo decidiu partir há três anos para viajar para a Itália e depois para a França. “Quando fui ao Sudão para ver a família, ele deixou a Líbia sem me dizer que iria cruzar o mar para a Europa”, contou Al-Fatih. “Falei com ele há apenas três dias ao telefone, mas nunca me disse que tentaria atravessar o mar novamente.”

O irmão mais velho acrescenta que houve um pedido de asilo político feito pelo jovem Hamdallah a Paris. “Em França, rejeitaram o seu caso. Então ele decidiu partir para o Reino Unido. Morava em França nos últimos três anos. Queria ter uma vida melhor e superar o horror em que costumávamos viver, mas o que aconteceu, aconteceu. ”

As últimas palavras do jovem na sua conta de Facebook foram escritas em árabe em junho, e a tradução literal é: “Na palma da mão do destino caminhamos e não sabemos o que está escrito”. Na quarta e na quinta-feira, centenas de pessoas deixaram mensagens de condolências no seu mural do Facebook. O destino de Hamdallah ficou fechado.

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