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Ser bidimensional

João Melo*

A minha mãe grávida de mim, o meu sexo não se sabia, mas já fora assente o tom que me tocaria: cor-de-rosa ou azul. Ninguém pensaria, sei lá, em preto mimosa do sul, ou branco farinha da Turquia? “-Se for menino é João, se for menina é Maria” – sentenciara a minha madrinha, a tia Sofia. Na infância ouvia rádio, ou via televisão a preto e branco (embora me parecesse cinzenta, não sei porquê) e podia escolher entre 2 canais: RTP e RTP. O meu pai tinha um 2 cavalos branco de capota cinzenta. Um dia o motor foi-se, já andava martelado, logo quis trocá-lo; chegou a casa com catálogos de Minis e disse:

-Qual gostas mais, Austin ou Morris?

-Pode ser um Rolls-Royce?

-Vê lá se queres levar 2 estalos!

E a escolha logo morria…

Na parede da sala d’aula estavam 2 fotografias: de um lado Salazar, do outro Américo Tomás. Talvez para desanuviar, ao meio havia um terceiro mas coitado, tinha um ar de agonia… Seria da companhia? Vade retro satanás. Com os 2 braços esticados e as 2 mãos pregadas, parecia piscar-me um olho como se dissesse “cá te espero”. Bem o compreendia, também eu passava pela agonia, sempre que ia ao quadro era um problema; resultado: um par de reguadas e apanhar um zero (1-0?). Não existia apagador que fizesse desaparecer a nódoa do meu ser, o dó que induziria aos senhores das fotografias. Saber ou não saber de cor, eis a única questão, e naquele palco de inquisição o crucificado de pouco me valia; vendo bem, a questão-mor resumia-se só a saber qual dos dois mais sofria. As minhas dificuldades sempre foram duas, português e matemática; nunca me dei bem com duplos sentidos nem raízes quadradas. Cantava um hino jurando fidelidade a uma bandeira verde e vermelha, mas entre a nação imortal e a marcha contra os canhões perdia-me a matutar com os meus botões: aquele borrão amarelo no meio da bandeira, o que seria? Quando tocava a campainha soltava-se o freio, a turma unida em correria partia para o recreio; no átrio em 2 se dividia, faziam-me tomar partido por uma facção:

-Sporting ou Benfica?

-Pode ser o Esperança de Lagos ou o Imortal de Albufeira?

-Não. 

E a esperança morria…

Outro dia perguntaram-me se, quando morrer, quero ser cremado ou enterrado? Esturrado ou enregelado, ah julgam que sou tolo? Não é a minha praia, prefiro ser atirado para a atmosfera, yeah isso é que era!

Vinham as férias, que alegria, campo ou praia, os destinos da estadia. Quando ia para a praia em 2 sítios podia andar: ou esturrava debaixo do sol ou enregelava na água do mar. 2 vezes durante o dia, de manhã e à tardinha passava um tipo vestido de branco angelical, apregoando gelados que trazia numa mala:

-É frutó chqlate

-Tem baunilha?

-Não mas tenho batatinha, Ti-Ti ou Pala Pala?

Entre o meio-dia e as duas dirigíamo-nos ao restaurante, e dia após dia o empregado repetia:

-O que vai ser hoje? Temos carne ou peixe p’ra grelhar.

-Não tenho fome, deixe estar, sinto-me com azia.

-O menino não quer que lhe faça um prego ou uma bifana?  

Nada me apetecia, comia bitoque toda a semana, que frete! Entre o verde e o vermelho, lá descobria um amarelo:

-Pode ser uma omelete.

-E p’ra beber?

-Um Sumol. 

-Laranja ou ananás? Fresco ou natural? 

-Olhe, arranje-me uma água com gás… não, pode ser uma gasosa Rical.

-Fresca ou natural?…

Depois trazia pimenta e sal, azeite e vinagre, ketchup e maionese, tira-nódoas e pó talco porque já enervado com estes padrões, ficava tudo espirrado na t-shirt ou nos calções. Desgostoso, de castigo, sem sobremesa sequer, ficava a observar o exoesqueleto da mosca pousada na mesa dum… dum senhor ao lado, até o meu pai chamar o empregado: 

-Queria a conta, por favor.  

Jocoso ele respondia:

-Queria? Já não quer?

E o próprio momo ria…

Tornei-me adulto e o século XX foi embora, não via a hora de me livrar da melodia desta dicotomia de outrora. A busca por algo mais ganhou novas dimensões, um googol de opções. Aceitei o desafio de fio a pavio, cedendo a minha privacidade em troca de felicidade. Então pude alimentar-me de biológico ou industrial, com ou sem lactose, com ou sem glúten, crer nas autoridades ou em conspirações, votar democrata ou republicano, trabalhista ou conservador, esquerda ou direita, ser contra ou a favor de Trump, Bolsonaro, Brexit, UE, China, aborto, LGBT, refugiados, emigrantes, máscaras, etc etc. Tudo isto aconteceu num piscar de olho, um simples click em like ou dislike, sem penas ou consequências, sentado em frente a um PC ou um Mac, ambos com sistemas binários (sim, 1-0), enquanto me distraía a comprar entretenimento com VISA ou Mastercard no iTunes ou google Play…

Sei que estou XeXé, um pouco gagá, cheio de tiques e toques nervosos, porque apesar de tanta possibilidade p’ra já p’ra já a minha vida não ata nem desata, reduz-se a duas dimensões, falta-me profundidade… Nem a favor ou contra canhões marcho, ando a marcar passo, e agora à beira do crash, diante dos meus olhos a vida passa num flash. Outro dia perguntaram-me se, quando morrer, quero ser cremado ou enterrado? Esturrado ou enregelado, ah julgam que sou tolo? Não é a minha praia, prefiro ser atirado para a atmosfera, yeah isso é que era! Ficava a vaguear pelo espaço, talvez até guiasse o Tesla, quiçá encontraria um de branco angelical e perguntar-lhe-ia se ele é real ou ilusório, se para cá do inferno ou além do céu há purgatório… Senão volto a cair rachado pela metade em cima do estádio da Luz ou Alvalade: gooolo!

Resultado final: um zero. Merecia? Não sei, mas não foi bem o que eu queria.

*Músico e Embaixador do Plataforma

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