Em estado grave

por Pedro Tadeu
João MeloJoão Melo

A relação dos humanos com os animais de estimação sempre me intrigou. Na antiguidade o gato caçava toda a bicharada, especialmente os ratos, a eterna praga dos celeiros. O cão era o guarda do clã ou servia de lambedor de dedos nos banquetes dos ricos. De prestadores de serviços passaram a seres “giros”, como provam os típicos nomes Tareco, Bobi, Piruças, Farrusco, Bolinhas… A migração de populações em direcção aos centros urbanos levou-os a confinarem-se em apartamentos, esvaziando os seus propósitos naturais. Num mundo superpovoado onde se desconfia do próximo, foram assumindo o papel antes reservado a humanos, convertendo-se em membros de pleno direito da família. Ganharam nomes de pessoas, tornou-se comum chamarem-se Gaspar, Óscar, Madalena… Os gatos não chateiam, apoderam-se da casa e vivem a atacar fios pendurados ou inimigos invisíveis. Os cães conseguem fazer os donos ir à rua na madrugada de um gélido inverno para urinar nas rodas dos carros, descobrir algo putrefacto, ladrar a um movimento ao longe, obrigar o homo sapiens a agachar-se e a apanhar o excremento do passeio. Uau, que admirável poder!

Se em vez de um canil, o incêndio de Santo Tirso tivesse acontecido num reptiliário, nem um traseiro se levantaria do sofá

Em troca dão-nos amor incondicional, sem julgamento e sem grande esforço da nossa parte, de tal modo se explica a devoção de Hitler à sua cadela. Os humanos possuem livre arbítrio, colocam desafios, potenciam decepções; os animais são o oposto, cómodos. A fraca capacidade de tolerar o imprevisível espírito humano leva os indivíduos mais susceptíveis à mágoa a preferirem refúgio emocional num amigo de quatro patas. Infelizmente a imaturidade de alguns donos vira-se contra o objecto da sua afeição, pois muitos abandonam-nos. Numa sociedade tão cheia de regras, os animais fornecem-nos igualmente saudáveis escapes. Os cães, por exemplo, encarnam o gozo da inconsciência, fazem o que gostaríamos de fazer: cheiram o cu uns dos outros, bebem água da sanita, comem porcarias da rua, mijam no sofá, montam-se na perna dos convidados e copulam livremente, yeah.

Evoluímos no trato com a criação e sinceramente celebro todos os avanços civilizacionais, mas ainda somos demasiado irresponsáveis. Na essência o estatuto especial dos animais de companhia não corresponde a um genuíno respeito por todas as formas de vida, apenas às favoritas. Talvez o fito seja explorar comercialmente a nossa visão antropocêntrica, agora na versão do século XXI, infantilizada. Nunca vi um gato caçar uma vitela, e se uma empresa produzisse latinhas gourmet de carne de rato, ninguém comprava porque temos nojo disso, não o Fluffy. Homens feitos divertindo-se a torturar um bovino para gáudio de uma plateia de seres racionais faz tanto sentido como ter um pénis na testa; contudo esta palhaçada mantém-se enquanto movimentar sectores da economia, vai-se justificando pela “tradição”. A ideia de consumir carne de cão repugna-me, no entanto resulta só da minha cultura, além de que numa perspectiva económica seria estúpido comer milhões de utentes de veterinários, cuidados de beleza, alimentação específica, etc. A destruição de habitats da vida selvagem perpetra-se fora do nosso espaço quotidiano, longe da vista, longe do coração; depois estranhamos sofrer na pele os seus efeitos, e basta mencionar um, os vírus.

Se em vez de um canil, o incêndio de Santo Tirso tivesse acontecido num reptiliário, nem um traseiro se levantaria do sofá, quanto mais uma manifestação; se fosse num aviário ou numa exploração suína estaríamos a falar de prejuízos financeiros do proprietário. Assim foram 54 animais mortos, “2 em estado grave”, e um destes, escutei eu nas notícias do dia seguinte, faleceu. Espero que não tenha sido o Tomás… Entretanto esqueci-me do número de mortos por covid-19 desse dia, cinco, dez velhos rabugentos? Não vi rostos, desconheço as histórias das vítimas. Os focinhitos dos inocentes peludos vi, geraram compaixão, eventualmente um ou outro manifestante chegou a sonhar com a presença do Marcelo. Estou convencido da justeza e das boas intenções dessas pessoas, todavia o respeito que um animal nos merece varia consoante a empatia ou utilidade, é cultural e oportunista. E quando a humanização de uma espécie se estica até ao delírio, quem está em estado grave é a humanidade, logo, os animais também.

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