“Na Venezuela os portugueses para terem apoio têm de estar na miséria total”

por Gonçalo Lopes
Gonçalo Lopes

A pandemia da Covid-19 não tem dado descanso em todos os cantos do mundo. Os infetados sobem, o número de mortes também e não há esperança de boas notícias num horizonte próximo. Este vírus tomou conta de tudo e todos. Mas há mais realidades a enfrentar, outro tipo de crises que têm prejudicado milhões. Uma dessas, bem profunda, é a conjuntura socioeconómica e política que a Venezuela tem enfrentado desde os últimos anos de Hugo Chávez no comando do governo – morreu em exercício em março de 2013.

Há algumas décadas, a Venezuela era vista como uma terra de oportunidades, para onde emigraram muitos milhares, nomeadamente brasileiros e portugueses. Diz quem conhece ao pormenor, que este país da América do Sul continua a ser a mesma terra de oportunidades dessas alturas. Contudo, não tem havido quem saiba gerir uma pátria “cheia de riquezas naturais”. Fernando Campos, empresário e conselheiro para as comunidades portuguesas da Venezuela, é o responsável por esta citação. Continua a acreditar nas potencialidades desta nação, mas, por enquanto, também reconhece que o povo venezuelano e os seus imigrantes precisam de ajuda, concretamente os portugueses.

Do ponto de vista social tudo piorou desde há uns anos. Não há segurança no investimento dos portugueses. Estamos numa situação tão débil, onde o Pai Estado controla tudo e pode tomar ações como e onde quiserem, como por exemplo nas expropriações. E também nessas nem se sabe se são pagas ou não, seguramente que não. Ainda assim, os portugueses querem continuar na Venezuela, num país muito rico e com muitas oportunidades. No dia em que a situação política mude e haja uma política de investimento, tenho a certeza que os portugueses vão estar um passo à frente dos outros na Venezuela. Mas, neste momento, ninguém está a fazer investimento. Estamos a apenas a tratar de proteger o que temos”, começou por salientar ao Plataforma, Fernando Campos, que, entre elogios, também deixa fortes reparos ao Estado português no que à comunidade emigrante diz respeito.

“O estado português tem sido muito pró-ativo nos últimos anos, não se pode negar de maneira nenhuma, temos de reconhecer o trabalho que o Estado fez, nomeadamente a aproximar-se da comunidade e aí tenho de honrar o ex-secretário de Estado José Luís Carneiro. Contudo, podem fazer algo mais pelos portugueses na Venezuela. É verdade que a comunidade portuguesa tem pessoas de classe social económica muito alta, mas depois há outras na miséria”, disse o empresário.

No dia em que a situação política mude e haja uma política de investimento, tenho a certeza que os portugueses vão estar um passo à frente dos outros na Venezuela

As suas críticas ao governo português prendem-se, sobretudo, com os apoios sociais concedidos à comunidade lusa naquele país, nomeadamente o Apoio Social a Idosos Carenciados (ASIC) e o Apoio Social a Emigrantes Carenciados (ASEC). Fernando Campos dá exemplos de portugueses que quiseram enganar o país de forma a garantir essas ajudas, mas também diz que por uns os outros que realmente precisam estão a pagar na mesma moeda.

Lamentavelmente, a comunidade portuguesa agarrou as más manhas da sociedade venezuelana. Como costumo dizer, tropicalizaram-se rapidamente, agora enganam para ter acesso a determinados apoios. Nunca me esqueço que tínhamos 3000 pessoas que recebiam o apoio social de Portugal e de repente o governo fez uma limpeza e só 25 passaram a recebê-lo. Muitas não tinham direito, eram mentirosos, enganavam e por esses outros também ficaram sem o direito ao mesmo”, afirmou, pedindo outro tipo de medidas para garantir ajuda a quem realmente precisa.

“É importante flexibilizar a assignação dos apoios sociais. As condições para se receberem esses apoios são tão titânicas que praticamente ninguém as recebe. Se a pessoa tem uma reforma ou uma pensão, de três euros, já não pode ter o apoio. Mas estes valores são uma miséria, já disse a algumas pessoas para renunciarem à reforma, pois o apoio são cerca de 170 euros. Tem de haver mais sensibilidade e aí o Estado tem falhado. A maioria dos apoios que têm ido para Lisboa têm voltado para trás. A burocracia é muito grande. Volto a dizer, os portugueses para terem apoio do Estado têm de estar na miséria total”, salientou.

As condições para se receberem esses apoios do governo português são tão titânicas que praticamente ninguém as recebe

Portugueses alimentam povo venezuelano

Apesar de muitos já terem regressado ao país, ou emigrado para outros, nomeadamente os portugueses de segundas e terceiras gerações, Fernando Campos não tem dúvida que aqueles que ainda se mantém no país (há um total de cerca de 500 mil portugueses na Venezuela) são fundamentais na sociedade. Chegaram há décadas para trabalharem e sobreviverem, muitos cresceram a pulso e hoje em dia, alguns, são vistos como salvadores.

“Há 41 anos, quando cheguei, a construção estava na mãos dos portugueses, era a segunda indústria depois do petróleo. Muitas coisas mudaram, sobretudo do ponto de vista económico. Por exemplo, nessa altura ganhava 10 dólares por dia, hoje em dia para ganhar esse valor num mês é um sacrifício. Mas mesmo assim os portugueses mantém-se cá e muitos são essenciais. Aliás, a Venezuela sabe disso e o governo venezuelano tem apoiado a comunidade, sobretudo porque é esta que está a alimentar o povo venezuelano. Os supermercados e padarias estão praticamente todas nas mãos dos portugueses. Todos sabem o peso da comunidade na vida dos venezuelanos”, assinalou o empresário ligado também ao meio alimentar, que vê, contudo, um êxodo por parte dos mais jovens.

“A nova geração de portugueses tem abandonado o país. Não têm capacidade de crescer na Venezuela, os licenciados não têm capacidade de viver aqui, por falta de oportunidades. Há pessoas bem empregadas, mas são muito mal pagas. Não há programas de apoio aos jovens. Não há nada, essas pessoas começaram a procurar oportunidades em outros países. Muitos portugueses foram para Portugal e outros para Espanha, sobretudo porque muitos também não falam português e o espanhol é muito parecido”, disse, deixando, contudo, algumas críticas a estas gerações:

“O venezuelano, e aqui incluo os portugueses de segunda e terceira geração, são maus emigrantes. Muitos também foram para países da América do Sul, sobretudo por questões económicas, sociais e políticas, mas agora estão a voltar. Os que saíram há muitos anos e conseguiram por lá ficar, eram pessoas com capital, estes não têm e regressam, não têm cultura de emigrantes.”.

A nova geração de portugueses tem abandonado o país. Não têm capacidade de crescer na Venezuela, os licenciados não têm capacidade de viver aqui, por falta de oportunidades.

Quais as razões para tamanha crise num país com tanto potencial?

Há mais de 40 anos na Venezuela, Fernando Campos insiste em dizer que não conhece muitos países com tantos recursos naturais. Estes, segundo o conselheiro, não têm sido aproveitados. Ou melhor, têm sido mal aproveitados. E aqui aponta claramente o dedo aos sucessivos governos.

Na Venezuela há uma grande crise social e económica, produto de más políticas governamentais. Desde os tempos de Chávez que os governos quiseram considerar as classes sociais mais desprotegidas, dar-lhes a palavras. Mas isto é um oportunismo político. Ao princípio até funcionou, mas inevitavelmente fez muito mal à sociedade, nomeadamente quando Nicolás Maduro entrou no governo. Nessa altura era mais importante ser do partido que estava no governo do que encontrar pessoas capacitadas para cargos ministrais”, afirmou Fernando Campos, salientando mais uma vez as condições de miséria naquele país.

“Há uma economia informal muito grande, talvez 80% das pessoas trabalham em economia informal, sem trabalho fixo. Há depois uma inflação impressionante, muito mal combatida com dinheiro inorgânico. O país caiu numa esfera perigosa, onde o dinheiro não vale nada, a moeda venezuelana (bolívar). O sistema de controlo que o estado aplicou provocou uma altíssima corrupção, especialmente nas esferas do estado. O país foi dilacerado. O povo venezuelano está na pobreza extrema, com um salário mínimo que não alcança os três euros. Há quem ganhe mais, 20 e 30 euros, mas é pobreza extrema”, considerou.

Todos estes problemas, segundo Fernando Campos, começaram com a falta de aposta por parte dos governos no que de bom tinha e tem a Venezuela. Hoje em dia o país passa por diversas privações das mais básicas que há, como o acesso à alimentação, água, luz, gás, gasolina, etc, e o empresário conta que poderia ter sido tudo evitado.

O sistema que o estado aplicou provocou uma altíssima corrupção, especialmente nas esferas do estado. O país foi dilacerado. O povo venezuelano está na pobreza extrema, com um salário mínimo que não alcança os três euros.

“O grande problema é a falta de investimento em todos estes anos. Em primeiro lugar, eles são oportunistas, é um tipo de governo que associo ao neofascismo. A falta de investimento na área do petróleo foi um desses casos. Temos os melhores engenheiros do mundo, mas foram todos corridos. Chávez despediu 300 engenheiros na televisão, em direto. Foram buscar alternativas que não era confiáveis, compraram equipamento obsoleto e tudo começou a parar, ao ponto que ficámos sem gasolina. Temos as maiores refinarias de gasolina, mas não conseguimos refinar um litro. As refinarias estão todas paradas, está tudo velho e nada serve. Os engenheiros que estão lá agora foram formados a martelo, tais como outros em outros setores da sociedade”, afirmou, referindo também as ligações menos positivas do país a outros países.

“A Venezuela está a regar ouro em países da sua área de ação, com quem se conseguiram aliar, como é o caso do Irão, da Síria, da Turquia, de Cuba, tentaram-se amarrar a uma Cuba que tem resistido ao imperialismo americano. Todos têm roubado. Mas continuamos a ter uma riqueza impressionante, mas não há capacidade para gerir esses recursos.”.

Um apelo à Oposição

As eleições legislativas na Venezuela estão marcadas para dia 6 de dezembro. Contudo, os principais partidos já anunciaram que não vão participar, nomeadamente o líder opositor Juan Guaidó. Praticamente todos acreditam que as eleições para a Assembleia Nacional, onde atualmente a oposição lidera, será “uma farsa”. Fernando Campos pede que não o façam.

“Neste momento, a maioria dos venezuelanos quer uma mudança política, mas a verdade é que a oposição também tem tido desacertos muito grandes. E ainda por cima a oposição tem um conjunto de imensas políticas, que vão de uma extrema esquerda a uma extrema direita, sendo que Nicolás Maduro pode tirar proveito disso. Mas não se apresentarem às eleições é mais um erro. Realmente estão todos à espera de um apoio internacional, para que as eleições possam ser tidas como normais, mas será, sem dúvida, um erro se não se apresentarem”, disse, tentando explicar as razões do povo, que, de acordo com as mais recentes sondagens, retirou alguma confiança a Juan Guaidó – há um ano tinha mais de 60% das intenções de voto e agora não chega a 20%:

Quando cheguei, o venezuelano não tinha cultura de política e continua a ser assim. A política deles é aquele que lhes der alguma coisa. Por exemplo, de alguma maneira o Chávez tratou de atender essas pessoas, conseguiu controlar um eleitorado.”

A oposição tem um conjunto de imensas políticas, que vão de uma extrema esquerda a uma extrema direita, sendo que Nicolás Maduro pode tirar proveito disso

Os números da pandemia

Tal como em outros países, também a pandemia da Covid-19 tem afetado o país. Contudo, oficialmente só foram registados pouco mais de 10 mil infetados e o número de mortes ainda não chegou à centena. Fernando Campos, que está há quatro meses no Chile depois de ter viajado para o Brasil e posteriormente não ter sido permitida a sua reentrada no país devido à pandemia, contudo, não acredita nestes números.

“No que diz respeito a esse assunto, não vejo veracidade nesses números. Ou seja, não acredito que sejam tão poucos, muitos é que não foram observados. Na Venezuela não há distanciamento social, não há confinamento, não há água”, referiu, mostrando-se preocupado com esta situação, sobretudo devido à falta de cuidados de saúde naquele país.

“O serviço de saúde do Estado está praticamente inoperante, são poucos os hospitais do governo que funcionam e os que funcionam estão em condições precárias. Aliás, nunca vi o sistema de saúde da Venezuela como bom. A nossa comunidade sempre foi muito pegada à saúde privada, funcionavam muito bem, hoje em dia, contudo, também já não servem”, concluiu Fernando Campos, assinalando depois as razões que têm levado alguns emigrantes a regressarem ao nosso país, nos últimos meses, em voos fretados pelo Estado português. “Os portugueses estão a aproveitar os voos humanitários para se protegerem da Covid-19.”.

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