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O amor não mata

Ana Sofia Fonseca*

As portas de casa são o seu melhor diário. As ombreiras contam tudo, conhecem cada noite daqueles 22 anos. Quem diria que uma porta valia como capítulo de biografia? Mal as poupanças permitiram, Paula aventurou-se a comprar casa. Trazia dos bancos da faculdade, o sonho de ter o nome no registo de propriedade. O salário alegrava, entre hospital e clínicas privadas, uns 5 mil euros. O apartamento é grande. Portas para os quartos, para a cozinha, para as casas-de-banho, para a sala… “As portas magoam mais do que os murros, sabia?” Não, não sabia. Foi a Paula quem mo ensinou, naquela tarde em que nos conhecemos.

Estava frio e ela caminhava entre sofás, com uma chávena de camomila na mão. A porta da sala conhece bem o seu sobrolho direito, os dois braços. A cabeça. A da cozinha é íntima da nuca. A do quarto lembra-se melhor das costas. Também da cabeça. As portas esmurradas, amolgadas, batidas. “Como é que me deixei ficar nesta situação? Como é que foi possível?! 22 anos”. O corpo arremessado contra as portas. Insultada, humilhada. A da casa-de-banho guarda a noite em que a morte rondou perto. O pescoço enforcado num cinto de cabedal e a cabeça atirada contra a ombreira. “Como é que isto me aconteceu?” Logo ela, licenciada, com independência económica e a certeza de que violência doméstica é “inadmissível”. Faltava-lhe saber que é crime que tanto desconhece idade, cor, situação económica e social quanto conhece género – as mulheres continuam a ser a esmagadora maioria das vítimas. Sim, o género importa.

A Paula veio-me à memória esta manhã, quando navegava por histórias de Moçambique. Há crimes com visto para o mundo inteiro. Em qualquer geografia, há portas que magoam mais do que murros. Quantas vezes também Josina Machel terá perguntado: “Como é que isto me aconteceu?”. Filha do primeiro presidente de Moçambique, Samora Machel, e de Graça Machel, enteada de Nelson Mandela, espigou numa redoma dourada, escolas de pergaminhos e ensinamentos de liberdade. Para ela, igualdade de género era realidade certa. Até à data em que o então marido a deixou cega de um olho. Nesse dia, viu o significado de violência doméstica. Se ela acabou cega, como acabariam as mulheres mais desprotegidas? Confiou a sua história às autoridades e empenhou os dias a criar o Movimento Kuhluka. A justiça está longe de lhe fazer justiça, mas as mulheres de Moçambique ganharam amparo. E voz. É preciso gritar bem alto que violência doméstica é crime. Gritar até que nenhuma sentença desculpabilize um criminoso. Até que nenhuma alma diga “entre marido e mulher ninguém mete a colher”. Gritar até que ninguém escreva crime passional. Até que as mentalidades mudem.

O chá arrefeceu nas mãos de Paula. Olhava para trás e via um labirinto de espinhos. “Como é que eu me deixei ficar 22 anos assim?”. Ficou até a revolta da filha lhe despertar a coragem. Uma noite, ao jantar, o marido levantou a faca do prato e apontou-a à filha mais velha: “Fodo-te a vida!”. Sem perder tempo, o filho pequeno imitou-lhe o gesto. A criança com uma faca na mão: “Pai, também te posso foder a vida?”. Paula estremeceu. A sua casa era morada de terror. Sacudiu a toalha da mesa e as forças. O amor sopra vida. Não mata, nunca mata. Nessa noite, decidiu que há portas com saída. É para isso que servem.

*Jornalista

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Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

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