Há sempre alguém que resiste

por Ricardo Oliveira Duarte
Ricardo Oliveira DuarteRicardo Oliveira Duarte*

“Mas há sempre uma candeia
Dentro da própria desgraça
Há sempre alguém que semeia
Canções no vento que passa”

As palavras de Manuel Alegre sobre uma Resistência que é Liberdade assentariam que nem uma luva no podcast da Folha de S. Paulo “Folha na Sala” de 07 e Julho. As palavras e as ações casam na perfeição, como se se conhecessem de outros tempos. Sinais dos tempos…

No episódio do maravilhoso podcast da Folha fiquei a conhecer a “busca ativa” de algumas escolas brasileiras e Josiel Leitão, Vera Lúcia Lisboa e Daniel Arais. A pandemia virou o Mundo do avesso e trouxe à tona histórias de resiliência e generosidade que merecem viver para sempre nas ondas de um podcast daqueles.

Com tudo ou quase tudo fechado, com o trabalho a saltar para dentro de casa, com a internet a não passar de uma miragem em tantos casos e com a geografia de um Brasil gigante e desigual a, naturalmente, não sair do lugar, esta foi altura de a Escola resignificar a tal “busca ativa” para identificar porque é que os alunos não vão às aulas. Levou-se à letra o ditado popular de Maomé e a Montanha e a Escola, agora de portas fechadas, galgou os muros e foi em busca dos alunos.

Josiel faz 15 quilómetros intervalados entre o cavalo e as próprias pernas, em Goiás, na zona de uma das maiores minas de níquel do mundo, por estradas cheias de lama e um rio cheio pela chuva, para acudir à fome de saber sobretudo de pessoas mais velhas que não têm internet e não tiveram oportunidade quando novos de aprender a ler ou escrever.

Vera, com a escola fechada pelo vírus, percebeu que apenas ela e mais ninguém viram as duas primeiras aulas que colocou numa plataforma online para os seus alunos do segundo ano em Vacaria, na Serra Gaúcha. Deixou o mundo online, escreveu uma carta aos pais, e na porta de casa estendeu um varal que encheu com kits individuais com cola e lápis do cor. Todos devidamente desinfectados. Os pais passavam lá e levavam para casa. A ideia correu rápida na internet e o varal saiu de casa da professora e passou para todas as escolas de Vacaria.

Duas vezes por mês o professor Daniel Arias apanha primeiro um barco “maiorzinho” e depois uma canoa para chegar às casas de palafita onde vivem os alunos que, no meio do rio Solimões, não têm outra maneira de aprender as letras e os números. 40% dos alunos de Daniel não têm acesso à internet e, assim, vivem isolados da escola em comunidades ribeirinhas no Amazonas, na região metropolitana da capital Manaus.

A pandemia virou o Mundo do avesso e trouxe à tona histórias de resiliência e generosidade que merecem viver para sempre nas ondas de um podcast daqueles.

Se estes três exemplos me chegaram via internet, na forma de podcast, outros há, dois concretamente, que foram sendo contados dentro de minha casa. Tenho acompanhado, com vista privilegiada, como uma professora e os alunos de uma universidade privada de Salvador da Bahia passaram a fazer tudo a partir de casa, passando por aulas “práticas” ou o Trabalho Final de Graduação (TFG). O esforço exigido a todos foi várias vezes multiplicado e as respostas obtiveram muita vez nota máxima.

Vários alunos passaram a trabalhar mais com a pandemia, estando em home office, tiveram de fazer um esforço ainda maior para equilibrarem as duas coisas – estudar e trabalhar – a internet nem sempre ajudou, os aparelhos – telemóveis ou computadores – também não, as casas muitas vezes com muita gente e pouco espaço não eram propriamente uma sala de aula… E no entanto, uma aluna ficou sem computador enquanto estava a fazer o TFG e, perante a impossibilidade de comprar um novo, decidiu escrever a parte teórica no telemóvel. Cerca de 80 páginas. Acabou com uma ferida num dedo e um 10 (20 na escala utilizada em Portugal).

Outra aluna, também durante o TFG, teve, durante a fase da conclusão do trabalho de dividir o único computador da casa com o marido que também estava a terminar o TFG, e com os dois filhos, ambos a terem aulas online, ou seja, pelo computador. Escreveu muitas páginas durante a madrugada, único horário em que o utensílio estava livre. Também teve 10.

É esta gente, este povo que escreve até ficar com os dedos em ferida, que salta para o lombo de um cavalo ou para dentro de uma canoa para ensinar e aprender que dá grandes lições, diárias, a quem demora quase um mês a decidir quem será o quarto ministro da Educação em ano e meio de governo.

“E mesmo na noite mais triste
Em tempos de servidão
Há sempre alguém que resiste
Há sempre alguém que diz não”

* Jornalista

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