Eu, a Miss brasileira e a Chevy de meu pai

por Guilherme Rego
Ferreira Fernandes*


Morreu Martha Rocha. Sou do tempo em que ela era Marta Rocha, quando foi eleita Miss Brasil, 1954, e concorreu a Miss Universo. Confirmei revendo as capas das revistas brasileiras Manchete e O Cruzeiro que, então, a minha mãe assinava em Luanda, Angola (a Internet é uma vizinha com memória mais velha que ela própria): “Marta”, era assim que se escrevia. Agora, a notícia é sobre “Martha”, em algum momento o nome mudou nas longas décadas em que aquela que foi a primeira Miss Brasil voltava às notícias. Mas isso é um pormenor, nesta história de dois pormenores maiores.

Eu nasci quando ela era uma menina a tornar-se bela adolescente; ela foi Miss quando eu tinha seis anos; e quando me tornei um adolescente banal, um pouco lúbrico, ainda se falava de Marta Rocha, ou talvez já de Martha. Apesar de ser em África, o meu bairro tinha bizarrias como o de me ter proporcionado a primeira passeata, com buzinas, bandeiras (fáceis de fazer com os tecidos de tafetá amarelo e verde dos carnavais) e palavra de ordem: “Brasil campeão!” (Suécia, 1958). Essas alegrias capitais bebiam em pequenas definições de identidade, tais como o principal dos pormenores de Marta: duas polegadas. Já lá vou.

Marta foi Miss Bahia, Miss Brasil e partiu para Long Beach, Califórnia, para conquistas universais. Eu aos seis anos já me tinha apaixonado pela Vivi, uma branca de São Tomé que um dia atracou em Luanda para se casar com um vizinho meu e desceu o portaló do navio com um deslumbrante vestido branco plissado. Revejo as capas da Manchete e de O Cruzeiro e não tenho dúvidas de que os olhos esverdeados da brasileira também me impressionaram no seu tempo e nos meus seis anos.

Nas capas, Marta aparece a meio corpo, em busto, e reparo que para a história, tal como ela viria a acontecer, as duas revistas equivocaram-se no essencial. Aliás, sempre gostei do jornalismo brasileiro mais pelo estilo do que pelos factos. Como era contundente David Nasser, o Turco, repórter de O Cruzeiro, frases tão faca afiada, português tão forte, e tão pouco agarrado aos factos a ponto de ter influenciado a escola noticiosa que reportou (e, o que mais é, fotografou!) discos voadores na Barra da Tijuca,1952. Em 1954, antes de Marta partir, o meu jornalismo brasileiro não focou o lugar físico em que a história iria acontecer.
O concurso Miss Universo 1954 existia há três anos e ainda nenhuma norte-americana o ganhara. A guerra da Coreia tinha acabado de acabar, mas o duelo pelo mundo espalhava-se. Vinha aí a crise do Suez, Cuba dos barbudos, o Muro de Berlim… Em terreno onde Moscovo abdicava de participar — um alienante concurso capitalista de beleza feminina — os Estados Unidos eram hegemónicos na doutrina e na difusão dela por Hollywood (a organização de Miss Universo era propriedade da Universal Studios). Era a vez, pois era a terceira, de uma americana ganhar.

Já Miss Carolina do Sul e Miss América, Miriam Stevenson apareceu com a tarefa inadiável de conquistar para o seu país o título desejado. Caramba, uma liderança universal, depois de ter livrado o mundo do nazismo e de continuar a suster os comunistas, bem merecia o gostinho de posar com coroa e faixa da beleza universal… Make America Beautiful For The First Time! – eram outros tempos, outros slogans.
Só que Miriam era da Carolina, mas do Sul, não a do Norte, como Ava Gardner, e esta já tinha 32 anos e três casamentos, não contando com o que fazia com toureiros e era proibido pelos regulamentos do concurso de Miss Universo. Enfim, a candidata dos Estados Unidos era só a Miriam Stevenson que, quando o concurso fez 60 anos, num inquérito online sobre quem era a mais bela das belas ganhadoras de Miss Universo ficou em sexagésimo lugar… E essa Miriam candidatava-se contra um esplendor vindo do Brasil.

Nada pior do que cutucar um especialista dando-lhe lições com erros óbvios

Declaro-vos, hoje e diria o mesmo quando eu tinha seis anos, os olhos de Marta Rocha eram tão esplendorosos e verdes como os de Ava Gardner. Mais tarde, com a adolescência e até hoje, eu saberia adivinhar nos olhos de Ava um não sei quê. Ou sei, mas aqui não é o lugar apropriado de o confessar. Resumindo, 1) quem concorreu foi Miriam, que estava longe de ser Ava; 2) concorreu também Marta tão bela quanto Ava, embora não tanto se os critérios fossem outros; e 3) ocorrendo tudo num pudico concurso de Misses, fingido mas pudico, é altura de Ava Gardner abandonar esta crónica e voltarmos à injustiça que se tramava em Long Beach, 1954.

Ali e então, apesar de toda a intenção americana de naquele certame a sua candidata ganhar, a beleza da brasileira impôs um concurso renhido. No fim das provas chegaram as duas empatadas. A marca Catalina, de fatos de banho, a principal patrocinadora do concurso, impôs às duas um desfile mais pormenorizado da cintura para baixo. Aparentemente uma tática suicida para quem concorria com uma brasileira…

Mas esse raciocínio é anacrónico. Confunde a América de Olivia de Havilland (ainda está viva, acaba de fazer 104 anos) com a América atual, a pós-Jennifer Lopez, com quem os americanos aprenderam a beleza de uma mulher ao ir-se embora. Em 1954, os americanos não adoravam ver Marta Rocha dengar vindo, nem muito menos rebolar indo. Preferiam ver a delgaçada Miriam Stevenson indo e vindo finamente. As curvas de Olivia de Havilland em E Tudo o Vento Levou eram enganosas, feitas de espartilhos e saias armadas e rodadas. Posando com fato de banho Catalina, Olivia era uma verdade estreita. A América de 1954 ainda vivia sob esse padrão, pelo menos na referida área anatómica. Por isso Marta Rocha voltou para o Rio de Janeiro com um apertado segundo lugar.

De certa forma foi bom, tudo apertado lhe ficava bem. Mas para o Brasil foi uma espécie de segunda derrota, depois do Maracanã 1950. Foi preciso, pois, os jornais criarem um facto para o país recuperar da desilusão. E nada melhor que um detalhe científico, mesmo inventado, para dar crédito à irrealidade. Na revista O Cruzeiro denunciou-se o mau da fita: o regulamento de Miss Universo era estrito, e ponham estrito nisso, nas medidas das ancas, coxas, motor V8 do rebolar. Queriam-nas fininhas, ali. Enfim, Marta Rocha perdera por ter duas polegadas a mais nos quadris!

Nada pior do que cutucar um especialista dando-lhe lições com erros óbvios. Ide dizer a um vinhateiro bordalês para misturar com Coca Cola um copo de Saint-Émilion! No Carnaval do ano seguinte, o Rio de Janeiro gozou com os ignaros que ousaram desprezar o sagrado. Uma marcha cantou: “Por duas polegadas a mais/ Passaram a baiana pra trás/ Por duas polegadas/ E logo nos quadris/ Tem dó, tem dó, seu juiz”. Em Curitiba, a Confeitaria das Famílias, criou a Torta Marta Rocha, de comer e chorar por mais gemas, natas, pêssego em calda e coisas boas de alindar formas – ainda hoje a receita é famosa e assumida.

Nesse ano, 1955, o meu pai foi à Casa Americana, ele era fã dos carros da General Motors, raramente os comprava na Robert Hudson, representante da Ford. Ele voltou com uma carrinha Chevrolet vermelha, marcada por muitos e reluzentes cromados, modelo 3100 (fui confirmar à Internet, a tal vizinha de refrescar a memória). O meu pai chamou-lhe “Marta Rocha” e achei-o um poeta delicado. De facto, quando, com os meus ingénuos sete anos, olhei a carrinha de frente, os seus faróis, sublinhados pelos cromados redondos, eram belíssimos como os olhos daquela Miss brasileira que aparecia nas capas das revistas Manchete e O Cruzeiro…

Agora, na hora da morte da velha senhora, os jornais brasileiros lembram que às pickups 3100 da Chevy, ano 1955, também as chamaram de “Martha Rocha” no Brasil. E não, não estou a voltar à irrelevante mudança do nome. O pormenor é outro. Leio agora, que os brasileiros quando olhavam a Chevrolet de frente, o que viam era os dois para-lamas dianteiros sobressaindo em relação à cabine, mais estreita. Curvilíneos como duas poderosas coxas que se poderiam medir mais ou menos, mais para mais do que para menos, pelas duas famosas polegadas de Marta Rocha. Aos seis, sete anos temos olhares que não são exatamente os mesmos do nosso pai, confirmo hoje.

*Jornalista

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