Luanda e as mulheres poderosas antes do tempo

por Filipa Rodrigues
José Kaliengue
José Kaliengue, Director do Jornal OPAIS

Lembro-me de Luanda com saudades. Daquela cidade que os mais velhos chamavam de Lua e que eu ainda não conhecia. Não era a Luanda que a muito custo me vai habitando hoje. Tinha um rosto lindo, inesquecível e sem gêmea cidade. Uma baía longa e contida por uma côncava marginal. Havia cartões postais que anunciavam a mais bela das cidades, o mais lindo, fotografado a partir da Ilha do Cabo, trazia-nos a curvilínea fronte feita de edifícios modernos fechados nos extremos por duas soberbas sentinelas: o porto da cidade no lado Norte e a fortaleza de S. Miguel a Sul, concluída em 1634. Aliás, Fort Aardenburgh na versão holandesa, a primeira fortaleza militar erguida em Angola, por Paulo Dias de Novais, sobre o Monte de S. Paulo, ou Monte da Fortaleza, com domínio sobre o mar e sobre a terra.

Os prédios da marginal dispunham-se respeitosamente de forma a dar vista aos morros da Maianga e, mais afastado, o da Samba. Num só postal se tinha a história da cidade, até se via as barrocas do Miramar e um bocadinho só do mercado do Kinaxixi, acima dos prédios da marginal. Os mais novos que se baixem, é imperdoável tapar a vista aos mais velhos. Havia um mar para contemplar, uma ilha para namorar com os olhos e uma brisa a receber, cheia de histórias de amor e de notícias novas de outros mundos, do Brasil, de Portugal, da América, da Holanda. As águas da baía eram o início do resto do mundo.

Mas era preciso adentrar a urbe, num acto que tinha de ser de amor, paixão, daquelas de querer descobrir cada recanto do corpo amado. Há sobrados estupendos no Bairro dos Coqueiros, bem no sopé da fortaleza. Um pouco mais a Norte o Palácio de Dona Ana Joaquina, mulata que se adornava de ouro e prata e que comercializava escravos, mas não só, foi a mais brilhante mulher de negócios angolana do século XIX.

D. Ana Joaquina Santos Silva, natural de Luanda, no ano de 1789, filha de Joaquim de Santa Ana Nobre dos Santos, português, e D. Teresa de Jesus, angolana, teve dois casamentos. Como outra mulher mulata “Santos” dois séculos depois, ela teve negócios em várias partes de Angola e no estrangeiro, Brasil, Portugal… a história é sempre cheia de ironias e de matreirices.

Luanda foi feita sempre a subir. Do palácio de D. Ana Joaquina, que naquele tempo sabia escrever, coisa nada comum para uma mulher e ainda mais não branca, pode-se subir o Morro da Maianga em busca de água, do rei. Sim, a maianga (cacimba ou poço) era propriedade do rei. Luanda tem problemas históricos com a água. Mas há outro caminho, a Nordeste e mais para cá, no século XX, um enorme edifício paralelepípedo, já à saída da Ingombota (mato) e a subir o planalto do Makulusso e do Miramar, estendendo-se até ao musseque de S. Paulo: era o Mercado do Kinaxixi, do início da década de cinquenta do século XX (acabado de construir em 1958), obra do arquitecto municipal Vasco Vieira da Costa.

Ao lado, na face que se escondia do mar, estava o largo Maria da Fonte, com um enorme monumento de iniciativa da Comissão portuguesa dos Padrões da Grande Guerra. O projecto do monumento também tem assinatura: Henrique Moreira, escultor. E era composto por um pedestal de granito, que simbolizava o altar votivo da Pátria e apresentava um conjunto de soldados europeus e indígenas que rodeavam a Vitória. Isto eu li na Internet. Mas antes eu vi no dito pedestal a estátua da Rainha Ana de Sousa Njinga Bande, de onde saiu em 2008, ano da morte do mercado reconhecido como uma obra prima de arquitectura adaptada ao ambiente, há quem diga que o seu desenho fez dele um aparelho de ar condicionado no tropical calor de Luanda. Mas entre a exaltação à vitória lusitana e a glória da Rainha Njinga Bandi, tinha havido tempo para o domínio de um carro blindado de fabrico soviético.

E paro aqui, em 2008, com a retirada da estátua da rainha, diplomata e guerreira mais famosa de África. Ela está agora confinada entre as espessas muralhas da fortaleza de S. Miguel, erguida pelos portugueses que combateu, sem serventia a mais do que a de estar no pátio de museu militar, sem pedestal, sem a glória e a altivez de uma mulher negra que confrontou a ideia de superioridade racial e de género do reputado sanguinário governador João Correia de Sousa, o “Átila do Kongo”. A história é conhecida: veio ela do seu reino dos Ngola, Matamba, enviada pelo seu pai Rei Ngola Bandi, por volta de 1622, para negociar a paz, o governador Português de Luanda recebeu-a numa sala com uma poltrona e um tapete no chão. Ele sentou-se na poltrona. Deve ter ficado arrepiado com o que se passou a seguir, tanto que o homem nunca mais foi o mesmo e acabaria por morrer mais tarde numa cadeia em Portugal depois de ter as suas tropas chacinadas em combate em Angola. Njinga não precisou de uma palavra, um gesto, bastou-lhe um olhar subtil e uma das suas servas agachou-se. Ela sentou-se nas costas da serva. “Aqui não há homem perante uma mulher; não há patrão perante uma serva, não há um branco superior perante uma preta inferior; não há um colonizador perante um povo que resiste. Aqui há duas pessoas iguais que representam dois reinos”. Foi esta a mensagem. Foi este o momento que desarticulou em definitivo o representante do Rei de Portugal.

Luanda tem hoje um novo rosto, o palácio de D. Ana Joaquina, destruído em 1999, foi reconstruído pedra por pedra, o forte de são Miguel tem a amurada rebocada com cimento e pintada (obra de empresa portuguesa), tem caixilharia e vidraça. Mas Luanda é inteligente, e digna, sem o mercado de Kinaxixi,  sem o seu monumento ao lado, com a sua fortaleza descaracterizada, fez erguer arranha-céus na marginal como um véu que lhe esconde o rosto, numa despedida do mar, da brisa, do mundo e da história. Os mais novos edifícios, vidrados, impõem-se, os morros preferiram preservar a dignidade em silêncio e sobriedade. Agora é preciso descobrir-lhe o rosto e as histórias. Não está mais feia, está mais misteriosa, mais excitante.

Njinga bateu-se pela liberdade, contra a escravatura. E nestes dias de derrube se estátuas, não há como não pensar na dela, talvez fosse um bom momento para a devolver ao seu lugar, no topo do mais alto morro de Luanda.

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