Início Eleitos “Contra a nossa vontade” – O sinuoso caminho da igualdade

“Contra a nossa vontade” – O sinuoso caminho da igualdade

Inês de Sousa RealInês de Sousa Real*

Em 2015, sentiu-se a necessidade de criar na Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável um objetivo centrado na Igualdade de género. As metas deste objetivo passam, por exemplo, por acabar com todas as formas de discriminação e violência contra todas as mulheres e meninas em toda a parte, ou por eliminar todas as práticas nefastas, como os casamentos prematuros, forçados e envolvendo crianças, ou as mutilações genitais femininas.

Estas práticas, embora possamos não querer acreditar, também ocorrem em Portugal. Para além disso, a violência doméstica e o abuso sexual ocorrem predominantemente sobre meninas e mulheres e a sua erradicação parece estar longe de ser alcançada.

Tive a oportunidade de assistir esta semana à apresentação do relatório da UNFPA (United Nations sexual and reproductive health agency), a agência das Nações Unidas para a saúde sexual e reprodutiva, sobre a Situação da População Mundial 2020.

Este relatório, intitulado “Against my will: defying the practices that harm women and girls and undermine equality” / “Contra a minha vontade: desafiando as práticas que prejudicam mulheres e meninas e impedem a igualdade”, concentra-se sobretudo em três práticas nocivas: mutilação genital feminina, casamento infantil e preferência por filhos homens.

Se houver um atraso de dois anos nos programas de prevenção da mutilação genital feminina só na próxima década acontecerão dois milhões de casos que poderiam ter sido evitados

As práticas nocivas decorrem, como o relatório tão bem explica, devido às “normas sociais que perpetuam o domínio de homens sobre mulheres, meninos sobre meninas” (…) sendo impostas a mulheres e crianças por membros da família, membros da comunidade ou da sociedade em geral, mesmo sem haver consentimento”.

A par destas existem, infelizmente, muitas outras como os crimes cometidos em nome da chamada honra, amarração, escarificação ou imposição de marcas tribais, modificações corporais (como discos labiais ou alongamento do pescoço), infanticídio, apedrejamento ou teste de virgindade. Para erradicar este tipo de práticas é preciso mudar as normas sociais subjacentes às normas de género nas comunidades – uma tarefa difícil considerando o seu enraizamento cultural

A crise sanitária que vivemos, provocada pela Covid-19, trouxe consigo uma crise económica e social sem precedentes, que pode colocar em risco anos e anos de trabalho e de alguma mudança, sobretudo se abrandarem os investimentos nestas matérias nos países de origem.

Aliás, o Relatório alerta para que, embora ainda não existam dados concretos sobre os efeitos da pandemia, os programas criados para erradicar a mutilação genital feminina e o casamento infantil estão com sérios atrasos, e a vulnerabilidade das meninas está a aumentar.

Se houver um atraso de dois anos nos programas de prevenção da mutilação genital feminina só na próxima década acontecerão dois milhões de casos que poderiam ter sido evitados; e se houver um ano de atraso nas ações para acabar com o casamento infantil podem acontecer mais de sete milhões de casamentos infantis que poderiam igualmente ser evitados também na próxima década.

De acordo com uma estimativa recente, levaremos quase 100 anos para fechar o fosso de género no mundo e 257 anos (dois séculos e meio!) para fechar a lacuna de género em termos de participação na economia.

Aos dias de hoje, estima-se que 40,3 milhões de pessoas vivam sob alguma forma de moderna escravatura e que 15,4 milhões de pessoas vivam em casamentos forçados, sendo as mulheres e meninas 99% das vítimas da denominada indústria sexual.

Não podemos abrandar o caminho para a eliminação destas e de outras práticas, antes pelo contrário: 250 anos pela frente neste combate é demasiado tempo e demasiado sofrimento para tantas meninas e mulheres!

Embora desde 2015, em cumprimento do disposto na Convenção de Istambul, se tenha autonomizado o crime de mutilação genital feminina, bem como se tenha criado os crimes de perseguição e casamento forçado e alterado os crimes de violação, coação sexual e importunação sexual, não foi suficiente. Não basta haver legislação, é essencial aplicá-la e investir na educação e sensibilização, bem como trabalhar junto das comunidades com vista a alterar os estereótipos de género que ainda persistem e que afetam a vida de tantas meninas e mulheres, evitando que as práticas sejam perpetuadas pelas novas gerações.

Discutimos diariamente, e por vezes de forma apaixonada, tantos e tantos vetores da nossa sociedade. No entanto, os milhões de meninas e mulheres que continuam a sofrer abusos ou qualquer outra forma de violência permanecem invisíveis para grande parte da sociedade. Esta é também uma batalha que temos ainda que travar:  consciencializarmos que o combate a todas as formas de violência não se faz apenas no papel e que estamos todas e todos convocados – não apenas meninas e mulheres, mas também meninos e homens – para erradicar esta violência, diminuir as desigualdades que ainda persistem, e contribuir para o empoderamento de meninas e mulheres.

Conforme tive a oportunidade de referir na conferência, para além do desafio de “não deixar ninguém para trás”, o maior desafio que devemos ter como mantra é o de empoderar estas meninas e mulheres para que passem a estar na linha da frente de uma sociedade mais justa, igualitária, em que os seus direitos humanos são respeitados e em que os fenómenos de violência não são apenas um atentado à sua vontade, mas sim um atentado à vontade de todas e todos nós.

  • Líder parlamentar do partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN) – Portugal

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