A flor que o general semeou

por Guilherme Rego
José Kaliengue
José Kaliengue, Diretor do Jornal OPAIS

Quando vi que era ela a chamar-me ao telefone, logo pensei num mar de dificuldades, lembrei-me da última vez que a vi, lembrei-me da última vez que faláramos, depois, ao telefone. A nossa última conversa tinha-me partido o coração.

No nosso último encontro tratei-a por Amélie Poulain, ela nunca viu o filme, eu contei-lhe um bocadinho só. Foi em sua casa. De barro e coberta por chapas esburacadas.

Conheci Amélia numa noite especial, na véspera do seu regresso à sua terra natal, o Cuito, a capital da província angolana do Bié. Conheci-a por intermédio do seu novo pai, o general Traça e da sua nova irmã mais velha, Henda.

Amélia tinha passado seis anos fora de Angola, em Coimbra, em Portugal. Regressava pela primeira vez, em definitivo até agora. Voltava renascida, transformada, com o seu novo sotaque coimbrão e com histórias para contar. As habilidades que tinha aprendido e que lhe serviriam para seguir na vida.

Na manhã a seguir àquela noite embarcamos num avião e seguimos para o seu reencontro com a sua terra.

Amélia e o Cuito não poderiam combinar melhor naquele Cacimbo de 2006, tinham evidentes as marcas da guerra. A cidade sem uma única parede que não tivesse sido mortalmente beijada por uma bala, um morteiro, o que fosse. Era um quadro pintado de dor a sangrar ainda em tempo de paz. Os rostos das pessoas tinham inventado a tristeza original, as conversas eram parcas, quase inaudíveis, os olhos escondiam-se nas profundidades de almas que também não estavam aí, havia apenas fragmentos, cacos espirituais.

Foi o que ouvi da menina que perdeu as duas pernas aos nove anos de idade numa guerra que nunca entenderá

Amélia tinha também as suas marcas, um sorriso confiante daqueles que apenas podem brotar da inocência de uma criança resgatada guerra e em quem alguém semeou a noção do ser, uma luz que se chama de esperança, cujo interruptor se chama amor. Era o que tinha feito o general, era o que tinham feito as famílias que ganhara em Portugal. E tinha também duas próteses, as suas duas novas pernas.

Tudo nela era novo: um novo pai, uma mana mais velha nova; uma cidade em escombros que deixara aos nove anos e que lhe entrava nova pelos olhos e pelo coração pela primeira vez, porque não tinha memória dela na sua infância na periferia. E tinha uma saudade imensa, dizia, da sua nova terra coimbrã.

“Quando passares pelo Cuito não te esqueças da Amélia, procura por ela, compra-lhe um telefone novo”, recomendou-me por anos a sua nova mana mais velha, a Henda. Em 2016 descobri-a num bairro mesmo nos limites da cidade, tinha dois filhos. Moravam no bairro outras meninas que com ela também tinham saído para a Portugal ou Alemanha para serem tratadas, também tinham tido minas a mudar-lhes o destino, ou a fazer-lhes o destino.

Aos nove anos, uma mina antipessoal roubou de Amélia as duas pernas, mas não o coração e a capacidade de amar. Ela era agora mãe. Solteira. Dois braços, duas crianças, mas sem as duas pernas. Sem emprego formal, mas com uma banca no mercado do bairro para vender o que aparecesse.

Meses depois ligou a sua nova irmã mais velha, a Amélia estava aflita porque tinha a Hendita doente, sim uma das crianças de Amélia é xará da nova irmã que a ensinou a reganhar a vida também. Movemos linhas telefónicas com contactos de médicos e contactos de contactos, tivemos sorte e foram bem atendidas.

Então, quando vi o seu nome no visor do telefone, com o país em estado de confinamento, numa crise económica de anos, lembrei-me que lhe estava a faltar havia mais do que tempo. Naturalmente, falaríamos de dificuldades, naturalmente, haveria que se ver como ajudá-la. “Liguei-te para saber como estás e para te dizer que a Hendita está grande, mano. Há muito que não falamos”. Foi o que ouvi da menina que perdeu as duas pernas aos nove anos de idade numa guerra que nunca entenderá, da mulher mutilada que é mãe solteira e que o amor de um general a ensinou a crer na vida, nas pessoas e a amar uma nova mana mais velha na filha que gerou. Não era suposto um general semear
flores.

*Jornalista e Diretor do Jornal O País em Angola

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