SNS e Liga dos Campeões: Qual o mais importante?

por Guilherme Rego
Guilherme RegoGuilherme Rego*

No início de maio, Portugal levantava o estado de emergência e passava a estado de calamidade. Acontecimento que só foi possível dado o aclamado sucesso nacional, com o SNS em grande plano no combate à pandemia de covid-19.

A 30 de abril, Portugal registava cerca de 24.692 casos positivos e 989 mortes – número de casos positivos crescia 2,2%. António Costa disse que, se necessário, daria um passo atrás no desconfinamento, por trazer, certamente, novos riscos de contágio.

Dia 1 de junho, Donald Trump felicita Marcelo Rebelo de Sousa pelo desempenho português no controlo da situação. Seis dias depois, é a vez de Xi Jinping telefonar ao nosso Presidente da República, salientando a eficaz cooperação Portugal – China. O país parecia sair do fosso que o vírus criou.

A economia portuguesa mergulhava nos seus piores dias. No entanto, o país parecia, a pouco e pouco, representar um exemplo mundial na luta contra a covid-19. Tão bem parecia, que a UEFA começou a ver com bons olhos promover os capítulos finais da Liga dos Campeões em palcos nacionais. Dia 17 de junho confirma-se essa aposta. António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa deliciam-se com esta “vitória”, antes de o jogo acabar.

No entanto, Portugal não regista um decréscimo no número de casos positivos. A 17 de junho foram confirmados 37.612 casos. A 29 de junho quase 42 mil. Isto dá, aproximadamente, uma média de 338 novos casos diários. O número não está a descer e mantém-se alto para aquilo que é a realidade portuguesa. O país, inclusive, é dos que tem maior percentagem de casos ativos no mundo. De momento, são 21.321 casos ativos, o que coloca o país em 21º no ranking mundial.

Comunicação das entidades governamentais

Infelizmente, António Costa e Marta Temido, ministra da Saúde, não querem soar alarmes nem desmantelar a imagem de que o país controlou a pandemia. O aumento constante de casos positivos foi explicado com um aumento dos testes feitos à população. Há uma proporção: quanto mais testes, mais casos. O número de infetados aumenta consoante o número de testes realizados. Não é motivo para alarme? Se os testes pararem, o número de infetados também para, seguindo esta linha de pensamento. Durante o encontro no Infarmed, que se revelou tenso, especialistas defenderam que o número de testes não tem nada a ver com o aumento dos infetados na região de Lisboa, o que contraria aquele que tem sido o discurso oficial de Costa.

Não obstante, o primeiro-ministro considera esta conquista (Liga dos Campeões em Portugal) como um “prémio merecido” para o SNS. A comunicação foi infeliz. Ora, pode-se discutir a definição de prémio para António Costa, mas o que realmente interessa é a definição de prémio para os profissionais de saúde.

Figuras do SNS sobre comentário do primeiro-ministro

O enfermeiro do Hospital Curry Cabral Nuno Moreira reagiu nas redes sociais e diz que as palavras de António Costa são “uma afronta” aos profissionais de saúde e a todos os portugueses. “A revolta atiçada pelo sentimento de injustiça, ao ver o primeiro-ministro António Costa ter a ousadia de verbalizar que a realização da final da Champions League em Portugal, mais precisamente em Lisboa, é um prémio aos profissionais de saúde”.

“Ainda que ‘inocentemente’ tentasse prestar uma homenagem simbólica, ainda que o tenha dito em sentido figurado e com toda a retórica política possível e imaginária, é uma afronta. Uma afronta a todos, a todos os profissionais de saúde, mas também a todos os portugueses, ao tentar que numa espécie de ato de magia, se consiga convencer um país, um Continente, uma Europa, de que tudo está bem. Não está tudo bem”, atirou o enfermeiro na sua página de Facebook.

Roberto Roncon, médico do Hospital de São João, no Porto, foi um dos profissionais que viu e tratou mais casos de covid-19. Numa entrevista ao Expresso, onde partilhou a experiência na linha da frente, comentou também a comunicação das entidades governamentais face à Liga dos Campeões. “As três grandes figuras do Estado português reuniram-se para celebrar a vinda de uma competição desportiva para Portugal e o primeiro-ministro disse que era um prémio para os profissionais de saúde. Não foi dito com má fé, mas é de uma infelicidade total. E não pediu desculpas, o que dói mais”, lamentou.

“Dois dias depois, foi o Dia Nacional do Médico e ninguém se reuniu. Na Alemanha vão aumentar o salário dos médicos, em França dar um prémio. Garanto-lhe que o que fiz não foi para ganhar uma medalha, ter mais dinheiro ou para ter um prémio, mas as pessoas também precisam de coisas simbólicas. Porque não dão aos médicos e enfermeiros que estiveram na linha da frente um dia de férias? O dinheiro não é tudo, mas estamos tão cansados que tenho algum receio que toda a energia e boa vontade que tivémos na primeira vaga possa não existir na segunda. Porque na verdade, a comunicação destes poderes tem sido calamitosa. Aquelas conferências de imprensa diárias são calamitosas. E o primeiro-ministro perdeu uma boa oportunidade para estar calado”, concluiu.

Onde está o prémio?

Países como a França e a Alemanha são exemplos do reconhecimento feito aos profissionais de saúde. Não só para os motivar, mas também para agradecer o esforço e risco de vida inimaginável pelo qual estão a passar diariamente.

A 15 de maio, a ARS Norte declarou que não iria aumentar o salário da linha da frente no combate pandémico. Segundo especialistas, o subsídio de disponibilidade permanente que auferem não se enquadra no aumento de atividade do SNS. A medida é contestada pela Associação dos Médicos de Saúde Pública.

O presidente desta associação, Ricardo Mexia, explicou à TSF que o subsídio de disponibilidade permanente que estes médicos auferem não se enquadra no aumento de atividade que começou há quatro meses, uma vez que este é “um subsídio atribuído para que os médicos de saúde pública se desloquem ao serviço sempre que ocorra uma emergência” e não para casos em que os especialistas têm de trabalhar praticamente todos os dias horas a mais.

“As horas trabalhadas que, na prática, há várias semanas, têm sido de rotina, têm sido todos os dias – os médicos de saúde pública trabalham muito mais horas do que aquelas que têm no horário – essas horas dificilmente podem ser enquadradas ao abrigo deste regime”, defende.

Ricardo Mexia disse que esta atitude da ARS Norte vai contribuir para um estado de espírito menos positivo no SNS: “Estamos a falar de profissionais que, há muitas semanas, estão a dar o melhor de si para controlar o problema. Naturalmente, perante uma situação destas ficam um pouco abalados, desiludidos, desmotivados. Espero que isso se vá resolver oportunamente.”

A faceta negativa está retratada. Contudo, nem tudo é mau. A notícia está longe de ser irrelevante dado o contexto nacional que se vive. Fora do foco do SNS, num momento em que o dinamismo do turismo é importantíssimo, esta competição, que não fazia parte dos quadros, vem agora trazer receitas excecionais. A verdade é que a Liga dos Campeões simboliza um marco importante para a revitalização da economia. O presidente do Turismo de Lisboa revelou que a competição pode ser fundamental para trazer confiança e alguma retoma, desde já. Vítor Costa refere ainda que o evento “permite antever um agosto positivo, mesmo que a pandemia não esteja ultrapassada”.

Impacto económico da Liga dos Campeões

Há seis anos, a final entre Real de Madrid e Atlético de Madrid gerou um impacto económico superior a 45 milhões para a cidade. Mesmo com restrições severas e sem plateia para encher os estádios, estima-se que possa haver um retorno financeiro de não mais de metade do valor acima referido.

Há inclusive hotéis sobre os quais o Turismo de Lisboa tinha indicação de terem optado por manter-se fechados durante o verão, que vão abrir de propósito para a Champions. “Há mesmo um hotel – que não posso revelar qual é por razões de confidencialidade – que vai abrir nesse período porque teve uma reserva de 100% da ocupação”, confidenciou Vítor Costa. Por outro lado, mais pessoas, potencialmente com covid-19, teriam de estar ao abrigo dos cuidados dos nossos profissionais, que preterem a revitalização económica, não desconsiderando a sua importância, para revitalizar a saúde e estancar a evolução epidémica. Há uma clara separação de ideias: uns apostam na economia, outros na saúde pública.

Afinal a Liga dos Campeões é um prémio. Mas não é para o SNS. É para o Turismo.

Após ler este artigo cada um tira as suas conclusões sobre o assunto. Existe uma petição a circular na internet a solicitar que o prémio final da Liga dos Campeões, normalmente pago ao vencedor e vencido da competição, seja antes doado ao SNS de Portugal. Já conta com mais de oito mil assinaturas.

*Jornalista do PLATAFORMA

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