No limiar da fantasia

por Guilherme Rego
João MeloJoão Melo

O símbolo representativo do maior numeral cardinal romano é o M, mil. Na minha infância o número mil significava a fronteira entre o real e o fantástico. Mil escudos era a nota de valor mais alto em circulação, dinheiro de verdade. Mil maneiras de confeccionar bacalhau é uma quantidade quase infinita, ainda assim concretizável. Mil-folhas é um bolo com tantas folhas que parece impossível de fabricar, mas consegue-se (cheguei a desfazer um para as contar e afinal tinha 28). Já “mil e uma noites”, ou “mil e um fantasmas” são contos sobre o fantástico, acrescentar uma unidade bastou para se passar para o outro lado do espelho. À medida que crescia ia descobrindo números maiores mas o padrão psicológico do mil manteve-se constante, multiplicando-o para quantidades maiores. No século XX, quase MM anos DC, 2000 Odisseia no Espaço nunca estimularia a imaginação, 2001 sim, permitiu sonhar. 

Quando me iniciei nos jogos de flippers as máquinas apresentavam 5 dígitos, somar pontos era uma tarefa difícil mas gratificante. Posteriormente surgiram máquinas de 8 e 9 dígitos, um mero alvo derrubado dava milhares de pontos; não sentindo a relação do meu esforço ante o resultado, logo perdi o interesse. Qual a diferença? Nas primeiras máquinas tinha a ilusão de controlar os números, nas últimas eram eles que me controlavam. 

De facto o nosso limite de natural discernimento raramente vai além dos dedos da mão, cinco. 

Mesmo sendo real, quem consegue visualizar no cérebro mil objectos? Nem cem. Ninguém tem mil ovelhas ou mil moedas, simplesmente é rico. Ninguém vive a mil léguas de distância, vive longe. Mil acaba por classificar uma ordem de grandeza não discriminada, antes reunida em um conceito. E esse conceito cada vez mais se afasta da nossa compreensão, porque dos “milhares” saltámos para constantes referências a “milhões”. Nas antigas famílias com uma catrefada de filhos, os pais às vezes eram incapazes de os distinguir, há até nomes criados para a sequência ordinal do nascimento: Quintino, Octávio, Nuno, Décio… De facto o nosso limite de natural discernimento raramente vai além dos dedos da mão, cinco. 

Os números astronómicos tendem a gerar impessoalidade, falta de empatia, esmagam-nos, e sem os dominar, desligamo-nos. Exceptuando o próprio ou alguém conhecido, as vítimas da pandemia não são pessoas, são números: “10 milhões de infectados e 500 mil mortos” – dizem-nos. E se fossem 20 milhões e 1 milhão de mortos, alterava alguma coisa nos nossos sentimentos, dobraria o sofrimento, por exemplo? Assim floresceu a indiferença pelo holocausto na Alemanha nazi. Se nem detemos controle sobre as nossas vidas, tampouco resolvemos problemas colectivos, refugiamo-nos no escape mental “alguém está ou devia estar a tratar do assunto, para isso voto e pago impostos”… 

Uma vez que a evolução tecnológica não foi acompanhada por uma evolução biológica, no mínimo precisamos de uma nova mentalidade, de modo a exercermos uma cidadania adequada ao século XXI, entendendo a grandeza do mundo. Senão somos só miúdos palermas a brincar com o fogo.

*Músico e Embaixador do Plataforma

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