Qual é a tua raça?

por Arsenio Reis
Arsénio Reis*

“Inquirido sobre a sua raça, respondeu:

– A minha raça sou eu, João Passarinheiro.

Convidado a explicar-se, acrescentou:

– Minha raça sou eu mesmo. A pessoa é de uma humanidade individual. Cada homem é uma raça, senhor polícia.”

Mia Couto (extracto das declarações do Vendedor de Pássaros)

Ele é um dos meus escritores. Mia Couto tem vários dons, um deles o de dizer muito com poucas palavras. O sonho de qualquer jornalista, como eu. Os pássaros estão presentes em boa parte da sua obra e dou por mim a pensar que são sempre um símbolo de liberdade. A liberdade de pensarmos o mundo sem amarras físicas ou intelectuais.

A pergunta que faço no título deste Editorial, para mim, não é inédita. Não sei bem qual é a minha raça… Nasci em Angola, filho de pais com origens, na portuguesa Serra do Caramulo, mas que de tanto viverem África (primeiro São Tomé e Príncipe e depois Angola, no caso do meu pai) sempre nos marcaram com a vivência de cheiros, sabores e a mentalidade típica de um calor que fixou para sempre a existência, deles, a da minha irmã e a minha.

As “minhas terras” continuarão a ser o Caramulo e Angola. Um dia – não sei se vos saberia explicar porquê – gostava de perder os dentes em terras africanas. Afinal foi lá que me nasceu a primeira dentição e foi também lá que testei os primeiros sabores, os primeiros cheiros e o calor de que ainda hoje tanto gosto.

Eu não sei de que raça sou. Só sei que “cada homem é uma raça”. E disso gosto

Os meus pais eram aquilo a que vulgarmente chamamos “brancos”. A minha mãe com um tom de pele clarinho, o meu pai escuro, ali entre o mulato, o cigano, ou o indiano. Quando regressamos ao Caramulo voltaram a tratá-lo pela alcunha (na aldeia todos tem uma alcunha). “Alma Negra” era assim que era conhecido e não me lembro de isso alguma vez o ter incomodado. Viveu todos os anos que lhe restaram de vida, com todas as memorias que lhe restavam de África. Nem sempre foi feliz com isso, mas acho que foi o jeito que encontrou para se manter vivo.

Ele era de uma humanidade individual. Uma alma negra – a viver num país onde podia destoar, mas que o aceitou e que ele também acabou por aceitar – assumindo a importância de voltar a Portugal em nome dos valores em que acreditava, nomeadamente a paz e a liberdade. Lá como cá, sempre funcionário público e preocupado com o serviço ao público.

Eu fui vivendo de mala quase sempre feita. Da Serra do Caramulo para Águeda, de Águeda para Aveiro, de Aveiro para o Porto, do Porto para Lisboa. A raça dos homens da serra e dos homens destas várias cidades está longe de ser a mesma. Acho que devo a isso a pessoa que hoje sou.

Habitei, podia dizer vivi, em várias redacções, com jornalistas com mais ou menos raça, mas sempre consciente de que quanto maior a diversidade, melhor seria o produto final. Acho que pode/deve ser assim em todas as profissões. Quanto mais heterogéneos forem os contributos, melhor será o que fazemos. Convocar os mais e menos raçudos dá por norma resultados melhores…e essa raça nada tem a ver com a cor da pele. Eu não sei de que raça sou. Só sei que “cada homem é uma raça”. E disso gosto.

*Diretor-executivo do Plataforma

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