Os antifas deviam era atirar-se a Hollywood

por Filipa Rodrigues
José Ferreira Fernandes

Atacar estátuas é perigoso porque elas são de pedra ou metal, materiais pesados, e são colocadas em pedestais. Para as atacar juntam-se multidões que iniciam a gravitação universal, a lei da atração mútua entre os corpos, estudada por Newton. De um lado as multidões ignorantes e a sua atração pelo atrevimento; do outro, o peso da estátua, que, caindo e metaforicamente, tem sempre mais consequências do que uma maçã… Resumindo, um choque violento, um ou outro manifestante ferido e Colombo, para já, com um fim que não merecia. Camões, padre António Vieira, Garcia de Orta, tudo quanto andou por mares e se cruzou com o outro, se calhar também na calha…

Um segundo perigo deriva também do atrevimento das multidões, que esperneiam e puxam pela corda (ou simplesmente tuítam), insultando o indivíduo reproduzido na estátua, quando geralmente pouca ideia têm de quem se trata. Aliás, interessa pouco a estátua mas, sim, a tese geral a concluir: “Portugal é um país estruturalmente racista, e o seu passado está aí para o comprovar…” Depois das semanas de confinamento, passámos rapidamente aos livros de História para colorir. Carimbamos o anátema (“racista!”) com um lápis de cor que tem uma variada paleta que vai do “racista” ao “racista”, sendo este último o caso mais grave.

Como já repararam, o segundo dos perigos, a ignorância, preocupa-me mais do que o primeiro, a lei da gravidade. Esta última pode causar um ou outro manifestante ferido (no Twitter nem isso), e é um exagero falar do fim de Colombo (Camões, padre António Vieira, Garcia de Orta…), que será sempre passageiro, digo eu que sou historicamente otimista. Já a ignorância, essa, sairá reforçada. Agora desatamos a catalogar, sempre com o mesmo carimbo, tempos, gentes e lugares de que temos só leves ideias. Um dos perigos das discussões polares – em que só há os dois extremos, e os muitos matizes intermédios se apagam – é a esperteza saloia de retirar à discussão a possibilidade de discussão. Os palcos e as personagens são de há meio milénio e uma neblina já pousou sobre os factos, então como os discutir quando a falta de dados impede a discussão ter discussão?

Proponho que não recuemos a História tanto, até Colombo, mas só meio século. Não 500, mas 50 anos. Num tempo em que ainda se podem pedir responsabilidades a alguns mais velhos e lembrar cumplicidades a muitos mais novos. Em 1970, Portugal debatia-se com a, então, sua principal questão: era um país colonial. Isto é, estava organizado para os portugueses dominarem outros povos. Tudo isso estava também cheio de nuances e de cinzentos, nem todos os portugueses mandavam o mesmo (tão longe disso!), e nem todos os outros, povos e indivíduos dominados, apanhavam pela mesma medida. Mas uma questão era então bem mais clara do que aquelas muito antigas que agora aparecem por interpostas estátuas: a guerra colonial era injusta e errada. E um dos elementos, não o único mas um dos principais, para definir essa guerra era o tal racismo. Esse que hoje mobiliza tantas exaltações.

Foi uma boa época para saber o que fazer contra o racismo. Tão injusta e tão errada era a guerra colonial que a cada cidadão se pode hoje pedir explicações sobre o que ele fez sobre o não fazer a guerra colonial. Apesar de também a sua própria cidadania ser bastante limitada, era uma obrigação moral, do mesmo valor à do padre António Vieira em ter falado pouco contra a escravatura dos negros. No entanto, um punhado, centenas só, uns poucos milhares se tanto, agiram como deviam, recusaram a guerra colonial. Por outro lado, centenas de milhares, mesmo de milhões de portugueses, foram de alguma forma cúmplices dessa guerra. Estão os tão exaltados de hoje contra os “racistas” de Quinhentos dispostos a deitar abaixo as suas “estátuas” pessoais sobre um passado de há só uma geração? Estão os mais velhos dispostos rasgar publicamente as vestes de vergonha por terem feito a guerra colonial? Estão os mais novos dispostos a deixar de frequentar a casa paterna, recusar a herança dos pais, atacar com um spray os casacos deles, “Racista!”, quando eles passam na rua? Espero que não.

Se alguém está disposto a isso, que se cure. Eu só convoco essa memória fresca e uma causa justa, para demonstrar que ele há assuntos que são para resolver, não para exibir indignações. Ele há assuntos como o racismo, que, de tão importante serem, exigem a nossa vontade de aumentar o número daqueles que ajudam a resolver. Ser intransigente, sim, quando tiver de ser, mas sempre tentar convencer. O racismo é para resolver, não é para nos vangloriarmos de ter razão.

Temos de saber resolver isto como os casais mistos americanos. Tão raros ainda eram na paisagem urbana americana em 1990, e tornam-se notoriamente cada vez mais. O que é de sublinhar porque nesse capítulo, na América, andar de mãos dadas ou deitarem-se na cama, um negro e uma branca ou uma negra e um branco, tem sido os cidadãos, os indivíduos, não os grupos, que têm imposto essa vontade e a vão tornando costume. Bem mais a vida real deles a mostrar do que a influenciadora de costumes para os homens e mulheres que é Hollywood a sugerir. Os factos estão mais adiantados que a máquina de sonhos! Hollywood já se passeava pelo espaço antes dos astronautas, mas o filme Loving só apareceu nos ecrãs em 2016, quase 60 anos depois do casal Richard e Mildred Loving, personagens reais, terem sido presos por estarem juntos na cama. Ele, branco, e ela, negra, apesar de legalmente casados na cidade de Washington, foram presos na vizinha Virginia, onde estava a cama e as relações sexuais entre casais mistos eram proibidas.

Desde 1934, o Código Hays legislava sobre os bons costumes na tela (o tempo dos beijos e assim) e explicitamente proibia qualquer sugestão de relações sexuais entre personagens de “raça branca e raça negra”. Entretanto, a vida real foi ensinando Hollywood a modernizar-se. Seis meses depois do Supremo Tribunal de Justiça americano ter abolido as leis anti-miscigenação do Código Hays, em 1967, no filme Adivinha quem Vem Jantar?, uma jovem branca ousou apresentar aos pais (Spencer Tracy e Katherine Hepburn) o seu namorado negro (Sidney Poitier). Depois disso, lá aparece um outro raro filme onde os pares se acasalam fora da previsível identidade do tom epiderme.

Se calhar era melhor as manifestações antirraciais subirem a uma colina de Los Angeles e tentarem influenciar (amedrontar, porque não?) um célebre e garrafal letreiro. Posta no caminho correto, Hollywood, sobre o racismo, poderia ser mais eficaz do que sei lá o quê. 

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