“Somos pretos e já conhecemos estas histórias”

por Filipa Rodrigues
Gonçalo Lobo Pinheiro

Na semana do funeral de George Floyd, morto por um polícia a 25 de maio em Minneapolis, Estados Unidos, o PLATAFORMA foi sentir o pulso ao sentimento de tudo o que aconteceu depois das imagens que chocaram o mundo. Seja por ignorância ou por pura maldade, o racismo existe e é global.

“Não é nada de novo”, começa por dizer Eliane Vasconcelos. “Somos pretos e já conhecemos esse tipo de histórias desde sempre”, acrescenta.

A cabo-verdiana residente em Macau augura que nada disto é bom, “muito pelo contrário”. “Infelizmente não é um caso isolado”, constata, depois de uns minutos a tirar uns retratos como forma de protesto e homenagem a George Floyd.

“Ao ver esse momento, quase que ao vivo, fiquei com raiva. Não há palavras para descrever o ato. É uma indignação enorme. Não houve qualquer motivo para aquilo acabar daquela forma. Sinceramente, acho que se fosse um branco, seria muito diferente. Não morreria, creio”, acusa Eliane que assume já ter passado por situações de racismo, principalmente quando está com pessoas com pele mais escura do que a dela.

Elisabete Barros, com raízes na Guiné-Bissau, também está revoltada. Nos últimos dias tem vivido algum sentimento de impotência. “A morte de George Floyd deixou-me muito triste. É um assunto [o racismo], que já se arrasta há tempo de mais. Frequentemente lá aparece mais um caso como este, na maioria das vezes passado nos EUA”, desabafa ao PLATAFORMA.

A guineense, há muitos anos radicada em Macau, tal como Eliane, considera que a morte de Floyd “não é um caso isolado”. “Como preta, quando vejo esse tipo de coisas, toca-me de uma maneira muito especial”. Recorda uma história que a marcou desde a infância. “O primeiro ato de racismo que senti foi aos seis anos. Mandaram-me com um balde de água fria porque não queriam que ficasse encostada à parede de um prédio. Isso marcou-me muito na altura”, relembra.

Cita ainda outros exemplos de como se pode sentir discriminação por causa da cor da pele. “por diversas vezes, pessoas não quiseram sentar-se ao meu lado nos transportes públicos ou aqueles olhares subtis que dizem tudo.

“Brancos não sofrem tanto”

Rosieane Veiga, 27 anos, é natural de Cabo Verde. Ao olhar para o vídeo da morte de George Floyd, diz ter sentido “uma imensa tristeza”. Revoltada com tudo o que viu, constata “uma vez mais” que “a polícia usa mais força com os pretos”. “Os brancos não sofrem tanto”, atira, explicando ao PLATAFORMA que há diversas ocasiões em que sente discriminação racial. 

“Havia alguma necessidade de tratar alguém que, alegadamente, terá usado uma nota falsa de 20 dólares daquela forma? 20 dólares? Por amor de Deus”, disse, nervosa, a angolana Graça Santos, de 21 anos, ao PLATAFORMA. “Sinto raiva. Tudo isto escalou sem necessidade”. Assumiu que nunca sentiu ser alvo direto de racismo, mas situações houve em que o sentiu quando acompanhava pessoas “de pele mais escura” do que a sua.

Já a cabo-verdiana Lucélia Tavares assume que uma das principais razões para haver racismo é a ignorância das pessoas. “Quando vivi na China chegaram a esfregar-me a pele para ver se a cor saía. Chega a ser caricato, mas é verdade. É tudo pura ignorância. Acho até que muitos chineses nem sabiam que existem pretos”, admite.

Ter visto as imagens de George Floyd a morrer é para Lucélia um momento muito dramático, mas apenas numa segunda leitura. “Confesso que, no primeiro impacto, não vi o vídeo como um ato de racismo. Mas depois comecei a ler várias coisas e fez-se o clique. Tornou-se em algo pessoal”, confessa a jovem de 25 anos que acredita que estes protestos, “apesar de bastante violentos”, vão ajudar a diminuir os atos de racismo. 

“Racismo não é um problema de negros”

Indignada por ver um homem algemado e tratado daquela forma, a também cabo-verdiana Djeny Antunes, de 21 anos, pensou que estaria a ver um filme de ficção. “Como é possível alguém estar ali imóvel, completamente dominado e estar a pedir ajuda e os polícias ignorarem. O que é isto? Maldade? Racismo? Incompetência? Isto nada tem a ver com preto ou branco. Já vi vídeos de brutalidade policial, mas nunca tinha visto alguém morrer ao vivo. Inesquecível, no mau sentido”.

António Barros, artista de música e imagem, está devastado. Confuso, até. “Estou muito magoado com o que se passou em Minneapolis. Os EUA estão num nível retrógrado ao nível civilizacional”, aponta o dedo, o jovem guineense de 19 anos.

Radicado em Macau confessa que já sentiu discriminação por causa da cor da pele. “Não vou ao detalhe, uma vez que esta questão não passa por branco e preto. Não pode”, atira António. “Já senti racismo em Macau, Portugal e até na Guiné. E essa é uma conversa que ninguém quer ter. Um negro ser racista para outro negro. Não vou remoer. Tento esquecer isso com a minha arte”, diz.

Dos que aceitaram conversar com o PLATAFORMA, Abraham Kenner é o único que não fala português. Nasceu no estado norte-americano de Ohio há 39 anos e já sentiu muitas descriminações na pele. “Sofri bastante. Podia estar aqui a falar isto e aquilo, dar diversos exemplos, mas não temos tempo para isso.”

O cantor, residente em Macau há um ano, refere que se destacasse um exemplo que fosse estaria “a vulgarizar” algo que é “uma questão muito importante”. Ter visto George Floyd morrer ao vivo foi simplesmente algo “muito triste”. “Isto acontece há muito tempo, provavelmente desde que os nossos ancestrais foram de África para a América. Nós protestamos, mas isto não é nada novo. George Floyd é apenas a ponta do icebergue, mas será, para sempre, um dos ícones da luta contra o racismo”, conclui. 

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