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Cada número é uma pessoa

Ana Sofia Fonseca*

Uma flor verde e cor-de-laranja. Pontos imperfeitos em pano branco. Descobri-o há meia-dúzia de dias, no abismo do mudar de casa, dobrado em quatro, no fundo de uma gaveta. Por momentos, esqueci os caixotes e recordei o crochet desengonçado. “Toma. Para te lembrares do dia em que voltei a ter casa. E nome”. Quando não tinha nada – nem nome – bordava. No remoinho do campo de refugiados, o medo dos filhos colado às pernas e as agulhas a tiquetaquearem a escuridão. Era um número. Era um dos 1,8 milhões de deslocados da Guerra da Bósnia. Era um de milhares de refugiados. Naquele dia, voltava a ter nome. Aura. E casa. A chave trémula na fechadura. As lágrimas a rangerem no rosto. Uma década depois da fuga, regressava a casa. Um apartamento em Dobrinja, um dos bairros martirizados de Sarajevo. Por ali, a guerra fez-se prédio a prédio, casa a casa, família a família. Ela é bósnia, o marido sérvio. Escaparam com os filhos às costas, por entre um festival de bombas. O ódio racial e religioso tem o costume de enfeitar o céu de chumbo. Naquele dia em que regressou a casa, o edifício continuava esventrado de balas, mas isso pouco importava. Naquele dia, deixava de ser só um número. Voltava a ser a Aura.

Nenhum governo pode esconder o destino da sua gente.

Conheci-a em 2001, a guerra calada desde o final de 1995 e ela finalmente a retornar a casa. A saltar da contabilidade dos refugiados. Há estatísticas onde ninguém quer estar, mas se não tivesse sido um número, provavelmente não teria conhecido a sua história. A sua mão a confiar o pano na minha: “Toma. Para não te esqueceres da Aura”. Tomei. Volto a dobrá-lo em quatro, arrumo-o num caixote, comigo de mudança em mudança. Para não me esquecer que a estatística é uma moldura. Cada número, um rosto. Não tivesse Aura sido um número e o sofrimento da guerra, o desespero dos refugiados não teria conta. É preciso contar espingardas. E vítimas. Cada número é um de nós. 

Já arrumei o bordado na casa nova, mas a Aura continua ao meu lado. Faz-me pensar no desvario que assola o Brasil. O (des)governo de Jair Bolsonaro desatina com a estatística da Covid-19. Ameaçou calar os números, depois quis comunicá-los a seu bel-prazer, deixando de somar totais de casos e de mortes. Há números que podem prejudicar a contagem de votos. Mas calar os números é apagar o presente. A verdade dos nomes. Felizmente, um consórcio de meios de comunicação social cumpriu o seu papel e assumiu a tarefa de divulgar a realidade. Na terça-feira, mais 1185 óbitos, ao todo 38.497 pessoas mortas. Nenhum governo pode esconder o destino da sua gente. Escamotear os números é apagar os nomes. Quem não conhece os sues mortos, não pode cuidar dos seus vivos.

*Jornalista

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Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

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