China aprova primeiro código para a sociedade civil

por Filipa Rodrigues
António Bilrero, Dinis Chan e Wendi Song

A recente aprovação pela Assembleia Popular Nacional do primeiro código civil da República Popular da China é vista como um passo positivo por advogados ouvidos pelo PLATAFORMA. O documento, que entra em vigor a 1 de janeiro de 2021, vem dar mais garantias e segurança em matéria de direitos aos cidadãos, admitem. A base de inspiração do novo código é o direito europeu continental.

“A aprovação do Código Civil Chinês é um sinal positivo porque permite que os tribunais sejam mais independentes a seguir e a aplicar a lei. Isso dá mais garantias aos cidadãos num Estado que, como sabemos, não pratica a independência dos tribunais”, disse ao PLATAFORMA a advogada Manuela António, ressalvando, contudo, desconhecer ainda a versão integral do documento

“Para nós – continuou – a independência dos tribunais é um princípio natural. Para eles não. Há o partido e é este que define as regras do Estado. Por isso, esta aprovação é um passo importante na aproximação do sistema jurídico chinês do mundo ocidental, não comunista. A China sente-se mais confortável com a influência do direito continental do que com a Common Law” [britânica].

Segundo a jurista, a aprovação do código representa “uma evolução positiva, designadamente do próprio primeiro sistema. Há uma evolução nos direitos e isso significa uma evolução positiva para a República Popular da China. Sujeitam-se à lei. Há um compromisso de que a lei tem valor”.

Para Manuela António, o novo código ao sistematizar num único documento um conjunto de legislação avulsa, já em vigor, “vem dar mais garantias, mais segurança às pessoas”. 

“Numa economia de mercado, mais liberal, os agentes económicos privados passam a ter normas consagradas na lei. Isso dá mais confiança para o investimento, a poupança, dando garantias de que as regras são respeitadas”, disse.

O código civil regula as relações entre as pessoas em áreas como a família, o direito sucessório, a propriedade privada, a personalidade, lembrou, concluindo: “Os direitos individuais passam a estar regulamentados no Código Civil. Nesta parte, a República Popular da China sente que é importante dar confiança às pessoas e respeitar os seus direitos”.

Para o advogado Nuno Sardinha da Mata, a aprovação do novo código representa duas dimensões, uma interna e outra externa. 

No primeiro caso trata-se de “um passo muito grande na evolução do direito da República Popular da China. É uma modernização do direito. Deixam de existir leis avulsas para integrarem um sistema coerente. É importante para o desenvolvimento do próprio direito. O grosso da legislação civil passa a estar codificado num único instrumento. Torna-se mais fácil de perceber a filosofia do sistema, dos direitos, a relação do direito privado e o exercício do direito”.

Por outro lado, no plano externo, para quem está fora do direito na China “a aprovação do Código Civil torna mais fácil conhecer o direito do país, facilitando assim a perceção do sistema, de como funciona. Há um quadro jurídico que regula as relações civis entre as pessoas. É também uma afirmação exterior do direito civil continental, tal como o de Macau”.

Pelos dados disponíveis, acrescentou, “está-se perante uma ideia de que este será um código moderno, já adaptado a novas realidades. Acredito que vai facilitar mais as relações, por exemplo entre Macau e a China e vice-versa”.

“Com o novo documento talvez venha a ser mais fácil, do ponto de vista profissional, o entendimento entre juristas e escritórios de Macau e da China, por haver um corpo coerente de legislação inscrito no código. Facilita o diálogo e a cooperação. Há uma linguagem que passa a ser comum. Apesar das diferenças, podemos dizer que agora estamos no mesmo comprimento de onda”, disse.

Já o advogado Victor Wai Hou Leng recorda que desde “a instauração do regime comunista em 1949, a República Popular da China desenvolveu quatro tentativas de codificação do Código Civil, além de ter consolidado a legislação civil vigente à época” 

“O código, tem por finalidade reunir, de forma sistematizada, as normas que regulam, nomeadamente o sistema económico, envolvendo-se nas relações comerciais do mercado, como elemento fundamental da sociedade”, destacou.

Victor Wai Hou Long assinalou que, por outro lado, “a tutela jurídica dos direitos da personalidade surge agora na própria compilação como uma criação independente e inédita, tal como em outros países que sofreram a influência da tradição romano-germânica, designadamente, no que diz respeito aos direitos reais, das obrigações, de família e sucessões”. 

“Isto também poderá servir de paradigma constitucional e de concretização do reconhecimento e da proteção dos direitos humanos consignados na Constituição da China”, acentuou.

Novo Código é “altamente inovador”

O professor na Faculdade de Direito da Universidade Renmin e principal redator do recém-aprovado Código Civil chinês, Yang Lixin, classificou o documento como “altamente inovador”, assumindo “um papel importantíssimo na legislação civil a nível mundial”. Yang Lixin participou em sessões via internet de esclarecimento do novo código, seguidas, por mais de 2 milhões de pessoas, no total.

Para o académico, “este é um Código Civil nascido no século XXI, assumindo por isso um papel importantíssimo na legislação civil a nível mundial. Não só prova a capacidade da China de criar um Código Civil, como faz grandes contribuições no conteúdo e estilo, adaptando as tendências das sociedades contemporâneas e os requisitos que a evolução dos tempos gera. Embora possua também os seus defeitos, é de alto valor para todas as legislações civis no resto do mundo”.

Yang Lixin indicou que o documento “foi compilado a partir das originais oito legislações civis, não sendo uma simples soma das mesmas, mas uma versão modificada e inovadora de todas elas”. 

“Dos atuais 1260 artigos da proposta do Código Civil, mais de 580 são reformulações inovadoras das existentes normas civis, especialmente no que diz respeito a direitos de personalidade, leis praticamente novas. Por isso o Código Civil chinês é altamente inovador”, assinalou.

Na opinião do especialista, “as anteriores legislações civis ofereciam prioridade a relações de propriedade sobre relações interpessoais, mas os ajustes introduzidos no novo código invertem-nas, refletindo o tom humanista da revisão”. 

“Para mim, o mais importante é a estipulação do direito de personalidade, também esta a parte mais distinta do Código Civil chinês”, salientou.

O conteúdo do documento – prosseguiu – foi adaptado para servir a vida do povo comum em matérias como “direitos de habitação”, “educação”, “direito à privacidade”, “atirar objetos de locais altos”, “ocupação de lugares em transportes públicos”, etc, prevendo que diferentes problemas do dia-a-dia podem ser resolvidos com o novo Código Civil. 

Lembrou também que, devido à evolução de tecnologias como a inteligência artificial e as grandes bases de dados nos últimos anos, o novo código “conseguiu não só abordar problemas atuais do quotidiano, como também possíveis questões que venham a surgir no futuro”. 

“Esta proposta altera também as regulamentações para heranças. Desde que a propriedade tenha sido adquirida por um individuo de forma legal, pertence à sua herança, e poderá ser passada aos herdeiros, protegendo assim a propriedade privada. Existem benefícios relacionados com esta maior flexibilidade, como por exemplo a inclusão de propriedade online e moedas virtuais que mencionamos hoje, tudo poderá agora ser herdado”, exemplificou.

E concluiu: “Apesar da polémica à volta deste assunto, a propriedade virtual foi incluída na proposta final, sendo o Código Civil chinês o primeiro a fazê-lo”.  

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