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Porque há motins na América?

Pedro Tadeu*

Querem conhecer algumas boas razões para haver motins com assaltos a lojas das grandes cidades do país mais rico do mundo?

Nos Estados Unidos da América, o tal país mais rico do mundo, vivem 326 milhões de pessoas. Ali há, pelo menos, 40 milhões de pobres. Destes, 18,5 milhões vivem mesmo em pobreza extrema e 5,3 milhões em condições de pobreza absoluta, como nas zonas mais miseráveis de África ou da América Latina. Mais de meio milhão de norte-americanos vive nas ruas, ou em tendas, ou em barracas. São dados da ONU.

Quantos destes milhões de pobres estarão dispostos a partir uma montra de uma loja para levar uma caixa registadora?

Nos Estados Unidos da América a COVID-19 matou, até agora, quase 108 mil pessoas, o desemprego atingiu, por causa da paragem económica provocada pela doença, o valor recorde de 40 milhões de pessoas, a economia está em enormes dificuldades, o presidente Trump divide o país ao meio.

Quantos destes desempregados estarão dispostos, no meio de uma manifestação descontrolada, a surripiar um computador para o vender no mercado negro?

Nos Estados Unidos da América há cerca de 70 mil mortes por ano por consumo de drogas. Os toxicodependentes são penalizados por lei e enchem as prisões: os Estados Unidos têm 4,3% da população mundial, mas acumulam, nas suas cadeias, 20% de todos os presos do mundo.

Quantos toxicodependentes, desesperados e sem esperança, quererão invadir uma farmácia para roubar opiáceos?

Nos Estados Unidos da América, depois da crise de 2008, os políticos prometeram acabar com os abusos do capital financeiro, dos bancos, das seguradoras. Prometeram acabar com os salários obscenos de gestores de grandes companhias e diminuir as desigualdades e o peso do endividamento no orçamento familiar.

Segundo a Reuters, o endividamento das famílias norte-americanas atinge os 13,3 biliões de dólares, mais do que em 2008, e só a dívida dos estudantes universitários atinge mais de 1,5 biliões de dólares, qualquer coisa como sete vezes o PIB do meu país, Portugal.

Quantos destes endividados, confrontados com a quebra de rendimentos dos últimos três meses, se sentem hoje à beira da falência pessoal? Quantos deixaram de acreditar nas instituições norte-americanas? Quantos estarão dispostos a ir para a rua para, simplesmente, partirem tudo?

Nos Estados Unidos da América nada de novo se passa com os motins que se seguiram ao homicídio do negro George Floyd

Em 2016 um por cento das famílias com maiores rendimentos nos Estados Unidos da América possuía 38,6% da riqueza do país. Do outro lado, 90% das pessoas com menores rendimentos só tinham 22,8% dessa riqueza. Dez anos antes estas percentagens eram, respetivamente, de 33,7% e 28,5%. O fosso da desigualdade aumentou.

Há duas vezes mais famílias afro-americanas (22%) na pobreza do que famílias brancas e, já agora, diga-se também que 19% dos hispânicos vivem na pobreza.

Quantos negros norte-americanos e hispânicos estarão fartos da miragem da justiça social e racial? Quantos, ao fim de gerações e gerações de luta inútil, são ainda capazes de acreditar que o chamado “sonho americano” está realmente acessível, de forma justa e limpa, em resposta ao seu esforço e às suas capacidades? Quantos, face ao cinismo de um sistema que formalmente tudo lhes garante, mas, na prática, tanto lhes tira, não estão convictos em ripostar com o cinismo da pilhagem?

Os Estados Unidos tiveram, em 200 anos, mais de 300 motins violentos, uma média superior a 1 por ano e, de 1965 até agora, 10 desses motins foram motivados por questões raciais, provocando centenas de mortes, dezenas de milhares de prisões, incontáveis prejuízos materiais.

Nos Estados Unidos da América nada de novo se passa com os motins que se seguiram ao homicídio do negro George Floyd.

Esta é uma nação extraordinária, com inúmeros aspetos admiráveis, mas que é incapaz de resolver as suas doenças crónicas: violência, pobreza, falta de acesso à saúde, tráfico de drogas, abusos da grande finança, desigualdade, racismo, desequilíbrio do sistema judicial. É por tudo isso que há motins…

… Porém, convém não esquecer o seguinte: na sequência da morte de George Floyd realizaram-se inúmeras manifestações pacíficas contra os atropelos racistas da polícia. O número de pessoas envolvidas no protesto pacifico é esmagadoramente maior do que o número de indivíduos que se dedicou a violência e às pilhagens. As manifestações, que juntaram negros, bancos, latinos e asiáticos contra o racismo em todo o país, são um sinal positivo da vitalidade democrática que os Estados Unidos da América também incorporam na sua sociedade.

*Jornalista

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Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

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