O luxo das pequenas coisas

por Abel Morais

De Portugal, de onde vos falo, cumpro o vigésimo dia de auto-isolamento. Vão 20 dias sem atravessar o Tejo de barco. Vão 20 dias sem reclamar do vento frio que se faz sentir junto ao rio que separa as duas margens. Vão 20 dias sem amaldiçoar o atraso do autocarro e ter de caminhar um quarto de hora pela estrada de Telheiras. Vão 20 dias que não oiço a raiva dos fumadores junto às Torres de Lisboa, cujos cigarros lhe são consumidos pela ventania. Vão 20 dias que não oiço a máquina do café da redação a encravar. Vão 20 dias que não digo cara-a-cara: “Bom dia pessoas do bem” e recebo um “bom dia só se for para ti”. Vão 20 dias que não me sento com os “camaradas” naquele restaurante de mesa corrida e onde, entre uma garfada e outra, se discute política internacional, se recebe o conselho da melhor série do momento ou se fica a saber a última fofoca de uma vedeta. Vão 20 dias em que me limito a olhar para um computador, quer seja para trabalhar, quer seja para manter o contacto de quem mais gosto. Vão 20 dias em que não me sento numa roda de amigos para partilhar um copo de vinho, um gin, uma cerveja. Vão 20 dias sem gargalhadas que me despertam os sentidos. Vão 20 dias sem ouvir palavrões ditos em alto e bom som. Vão 20 dias a matutar no que virá a seguir. Vão 20 dias a contar os dias. Vão 20 dias a desejar que isto acabe depressa. Vão 20 dias de auto-isolamento. Vão 20 dias sem um abraço e um beijo da minha mãe.

Pode também interessar

Contate-nos

Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

Plataforma Studio

Newsletter

Subscreva a Newsletter Plataforma para se manter a par de tudo!