Se aceitarmos como premissa de que o Covid-19 é um mal instalado, com que iremos coexistir por algum tempo, tiremos então partido disso. Salvaguardado o respeito por todos quantos sofrem com os males já provocados, desde o simples cerceamento da liberdade pessoal até à morte, façamos um esforço e encaremo-lo como mal que também veio por bem. Sugestão que reconheço ser desconfortante, provocadora, sem descurar dos efeitos contraproducentes que possa arcar. Mas vejamos. Há quanto tempo não estávamos em casa na companhia dos filhos, a conversar e a seguir de perto o seu crescimento e os seus problemas? Há quanto tempo não nos preocupávamos com a higiene das nossas mãos, com a consciência de terem de estar limpas? Há quanto tempo não ligávamos para a saúde do nosso vizinho, do nosso próximo, familiares e amigos? Há quanto tempo que “boa saúde” era apenas um voto de mera cortesia? Há quanto tempo não foram relegados para segundo plano valores como a igualdade e fraternidade e se estigmatizaram raças, religiões, orientações sexuais, a escolha pela
vida? Há quanto tempo os Estados não se viraram de costas uns para os outros, por mera birra, deixando centenas de milhares de pessoas em situação de total aflição? Podia alongar-me, mas seria fastidioso. O vírus chegou e entrou nas nossas vidas. Ignorou as nossas nacionalidades, culturas e cultos ao fazer vergar regimes e sistemas políticos, pondo a nu as fragilidades e a credibilidade das lideranças. Porque para o micro-organismo apenas releva a condição de sermos seres vivos. Tal como a morte, que não diferencia ninguém. Que partido a tirar? Encararmo-nos seriamente como comunidade global. Uma oportunidade de ouro para pararmos e reflectirmos concertadamente, dialogando sem preconceitos, nem pedras na mão. Não há concorrência, nem egoísmos, porque a saúde é para todos. Utópico? Talvez, mas não por muito tempo. Que o Homem se prepare melhor para o próximo repto da Natureza, mais duro, por certo. Há uma certeza: tudo mudou.
Miguel Senna Fernandes 20.03.2020
