Poderá o coronavirus mudar a China?

por Arsenio Reis

Numa altura de crescente criticismo à centralização de poder em torno de Xi Jinping, o surto que paralisou a China ameaça abalar o regime chinês que historicamente definiu objetivos de saúde pública como fonte de legitimidade.

“A necessidade de controlar a disseminação do vírus é tida como vital para a estabilidade e a segurança nacional da China, e a própria legitimidade política do Partido Comunista chinês (PCC)”, resume Xun Zhou, professora de História moderna da China na Universidade de Essex, no Reino Unido.

No final século XIX, o desígnio o “homem doente da Ásia” sinalizava a pobreza e fracas condições de higiene e saúde na China. Após a ascensão ao poder dos comunistas, em 1949, a saúde pública passou a ser prioritária para a conquista de legitimidade pelo novo regime. “Campanhas de saúde pública eram simultaneamente campanhas políticas”, explicou Zhou, numa entrevista por telefone. “A liderança do PCC sabia bem que promessas de melhor saúde constituíam formas poderosas de propaganda”, realçou.

Durante o reinado de Mao Zedong (1949 – 1976), a liderança comunista adotou a erradicação de doenças e a melhoria da saúde de toda a população como um pilar central da governação. A campanha dos “Médicos de Pés Descalços”, funcionários de saúde treinados para prevenir e curar as doenças nos meios rurais, tornou-se mesmo uma parte importante da relação entre a República Popular da China e o resto do mundo, com a Organização Mundial de Saúde a incentivar os países em desenvolvimento a seguirem o exemplo chinês.

No entanto, as reformas económicas pós-maoísmo levaram à migração de centenas de milhões de trabalhadores rurais para as cidades, num ritmo de urbanização sem paralelo na História moderna, gerando novos riscos para a saúde pública, incluindo a pneumonia atípica, entre 2002 e 2003, a gripe aviária, em 2013, e, atualmente, o surto do novo coronavírus, designado COVID-19.

“A agravar o surto está o atual estado do sistema de saúde chinês: sobrecarregado, ineficaz, caro e caótico”, criticou Zhou.

Falta de transparência prejudica sistema

 

Para o sinólogo italiano Francesco Sisci, professor na Universidade Renmin, em Pequim, a atual crise de saúde pública expõe “falhas estruturais profundas”. O “sistema político do país é frágil e precisa de mais transparência, elasticidade e agilidade para identificar desafios”, sublinhou.

Em pouco mais de um ano, Pequim passou a enfrentar uma custosa guerra comercial com os Estados Unidos, a pior crise política em Hong Kong em várias décadas, um surto de peste suína que fez disparar a inflação e a vitória nas eleições presidenciais em Taiwan do partido pró-independência da ilha.

“Todos estes desafios têm raízes no sistema chinês”, comentou Sisci. A “falta de transparência” torna “muito difícil” para a liderança em Pequim “avaliar a realidade de qualquer ameaça e reagir rapidamente”, salientou.

O novo coronavírus foi inicialmente detetado no final do ano passado num mercado de mariscos nos subúrbios de Wuhan, centro do país, quando as autoridades locais reportaram 27 infetados com uma “doença misteriosa”, e descartaram que a doença fosse transmissível entre seres humanos.

Volvidas duas semanas, os boletins diários da Comissão de Saúde de Wuhan sobre a doença continuaram a afirmar que não havia novos casos de infeção, nem evidências de transmissão entre seres humanos ou casos de infeção entre médicos e enfermeiros. A própria Organização Mundial de Saúde garantiu então que o surto não se tinha alastrado além do mercado.

No entanto, a 16 de janeiro, o Japão reportou um caso – um homem que tinha visitado Wuhan, mas que não esteve no mercado. Dois dias depois, também a Tailândia reportava um doente. Internautas comentaram ironicamente que o vírus era “patriótico”, pois parecia só afetar estrangeiros.

A 22 de janeiro, o Governo central colocou a cidade sob uma quarentena de facto, com entradas e saídas interditas. Nas semanas seguintes, províncias em toda a China reportaram casos de contaminação pela doença, a um ritmo de dezenas de milhares de novos casos por semana.

Entretanto, várias companhias aéreas suspenderam voos para e a partir da China; Rússia, Coreia do Norte e Vietname encerraram as fronteiras com o país; vários países pararam de emitir vistos para cidadãos chineses; a Organização Mundial da Saúde decretou uma emergência internacional.

Internamente, aldeias ergueram muros para impedir a entrada de forasteiros. Em Pequim, seguranças contratados pelos moradores montaram tendas militares à entrada de bairros, proibindo o acesso a não residentes. Em alguns casos, residentes bloquearam as entradas dos bairros, empilhando bicicletas e amarrando-as com arame farpado.

Milhões de trabalhadores deveriam ter já regressado das terras natais, mas a rápida propagação do vírus levou muitos a permanecerem em casa, impedindo a reabertura de fábricas e negócios, com consequências imprevisíveis para o tecido empresarial da segunda maior economia do mundo.

“A China não é um bom sítio para se estar agora”, reconheceu o dono de uma hamburgueria situada na zona antiga da cidade. O ambiente contrasta com o furor nacionalista que marcou a China em 2019, ano em que a República Popular da China celebrou o 70º aniversário. Exibições, filmes e artigos difundidos pela imprensa oficial celebraram o rápido progresso do país, assinalando as proezas do modelo de desenvolvimento chinês, no qual a estabilidade política é o valor mais importante e considerada a base da prosperidade económica.

No entanto, o surto expôs as contradições da estrutura monolítica do poder chinês e da manutenção da “estabilidade” a todo o custo. A morte de Li Wenliang, o médico que alertou inicialmente para o novo coronavírus, mas que foi repreendido pela polícia – que o obrigou a assinar um documento no qual denunciava o aviso como um boato “infundado e ilegal” – levou a uma contestação inédita nas redes sociais chinesas.

O tópico #woyaoyanlunziyou (‘eu quero liberdade de expressão’, em chinês) tornou-se imediatamente viral, apesar dos esforços do aparelho de censura chinês para apagar as contas. “Herdeiros de 2000 anos de regime autoritário, ao povo chinês foi feito crer que direitos individuais, incluindo liberdade de expressão, são meros conceitos ocidentais, adotados por algumas elites que vivem nas nuvens, e que não são adequados para a China”, contextualizou Li Chenjian, professor da Universidade de Pequim.

“A primeira dolorosa perceção é que o auto aclamado superior sistema chinês falhou com o público mais uma vez, miseravelmente”, descreveu. “A política de que a estabilidade e a lealdade ao partido e ao seu líder superam tudo corrompe todo o sistema burocrático da China”, reforçou.

Quando Li Wenliang avisou os colegas, o novo coronavírus não tinha ainda sido identificado, mas o médico detetou semelhanças com a pneumonia atípica ou Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS, na sigla inglesa), um coronavírus que abalou a China há quase duas décadas. Em entrevista à revista chinesa Caixin, pouco tempo antes de morrer devido à infeção pelo COVID-19, Li defendeu maior liberdade de expressão no país.

Na entrevista, afirmou: “Acho que uma sociedade saudável não devia ter apenas uma voz”.

João Pimenta 21.02.2020

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