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“Voltaria a fazer tudo de novo”

Depois de cinco anos sem expor individualmente em Macau, Carlos Marreiros volta com Red December, que depois de Macau vai repetir-se em galerias da China Continental, Portugal e Itália. As paredes vermelhas, pretas e verdes das três salas da Galeria do Tap Seac estão cobertas de quadros e desenhos do artista, que também aparece em vídeo noutra sala à conversa com o artista Konstantin Bessmertny. A mostra é uma pequena viagem por uma carreira longa. Ao PLATAFORMA, confessa que se está a preparar para deixar a Arquitetura e que é tempo de se dedicar a outros sonhos. 

– Há cinco anos que não organizava uma exposição individual em Macau. Porquê tanto tempo?

Carlos Marreiros – A Arquitetura rouba-me muito tempo. Por outro lado, o Albergue tem uma programação muito dinâmica e exige muito de mim. Por causa disso deixei de pintar, mas nunca deixei de desenhar. Como tive um convite do Instituto Cultural de fazer uma exposição a propósito dos 20 anos da RAEM, concebi Red December. Red porque o vermelho é uma cor muito auspiciosa para o chinês; Dezembro por ser o vigésimo aniversário da RAEM; Red December porque as pessoas podem pensar no Red October, traz água no bico…

– Mas que signficado tem Red December para si?

C.M. – A exposição está dividida em dois actos. O primeiro tem obras feitas há mais de 30 anos. Conto histórias de uma Macau que não existe: que existiu ou pode vir a existir. Estes desenhos, que são mundialmente conhecidos e que foram publicados por todo o mundo, surgem na sequência de leituras que eu fiz de Gabriel Garcia Marquez. Há uma vez que sai de um comboio numa estação e vê um nome engraçado da estação e inventa uma cidade ficcional. Através disso conta histórias e divulga a cultura que lhe é grata. Os Cem Anos de Solidão é precisamente essa cidade ficcional. A minha Macau tem muitas Macaus: tanto aparece Camões como Cristiano Ronaldo, e dentro da Macau aparece não só Macau mas Lisboa, que é a minha segunda cidade. O Red December é um barco enorme que inclui várias cidades como Lisboa, Porto, Rio de Janeiro, Praga, Pequim… e depois conto histórias. 

– E o segundo ato?

C.M. – Surge na sequência do que outro escritor, Jorge Luís Borges, diz: que o livro é um objeto morto num mundo de objetos mortos, só faz sentido quando o leitor certo descobre o livro e o relê, a magia acontece, a poesia, o significado por detrás das palavras ganham a sua glória. Esta biblioteca que partilho com o público é constituída por perto de 50 livros de notas e desenhos que escrevi e desenhei. São milhares de pensamentos que pela primeira vez partilho. Espero que o leitor certo descubra a magia escondida nos meus desenhos.

– A exposição também assinala os 20 anos da RAEM. Como olha para as duas décadas que passaram, enquanto artista, residente e macaense? E já agora para as próximas, sobretudo para o pós-2049?

C.M. – Depois da transferência de soberania, tudo mudou e nada mudou. Tudo mudou porque de uma soberania de administração portuguesa passámos para uma chinesa. Houve uma rotação de 180 graus. Nada mudou porque Portugal soube respeitar os compromissos ao contrário do Reino Unido em relação a Hong Kong. Há que aplaudir, nestes 40 anos de reatamento das relações diplomáticas, os portugueses respeitaram Macau, os chineses respeitaram Macau e nós vivemos felizes. Nada mudou no sentido que o sistema político, a forma de fazer negócios se mantiveram. Para o bem e para o mal. 

– O que quer dizer?

C.M. – Depois de 1999 muito foi melhorado, nomeadamente os serviços públicos: o atendimento, a boa educação da polícia, a educação deu um salto brutal. Em muitas áreas houve um desenvolvimento muito bom. Há áreas piores, como o Direito, na qual houve uma juniorização, gente sem grande traquejo ocupou cargos e neste processo houve elementos claramente incapazes que tomaram o poder a pouco e pouco, principalmente no segundo mandato de Edmund Ho.

– Gente incapaz?

C.M. – Invejosos, pessoas com mente quadrada e burocratas tomaram conta de alguns setores, nomeadamente e não escondo o nome, Lau Si Io [antigo secretário para os Transportes e Obras Públicas]. Fez Macau regredir 30 anos. É um exemplo. Não tenho nada de pessoal contra ele, mas foi um atraso de vida. De resto Macau anda bem, recomenda-se e agora tenho muitas esperanças no novo Chefe, que vai agitar as águas. Tenho a esperança de que mantenha Macau harmoniosa, onde haja convivência entre as pessoas, onde o português seja respeitado, tenha capacidade de criar instituições. O Direito, a Medicina, o Jornalismo, a Educação, a Literatura são áreas bastante respeitadas pelo chinês em Macau. Agora com o objetivo de fazer de Macau uma plataforma entre a China e os países de língua portuguesa, queiram os portugueses fazer uso disso.

– Sente portanto que não há motivos para receios?

C.M. – Não há nenhuma razão. A China está a evoluir de uma forma muito rápida. Sou um estudioso da História da China, desde 84 que vou com frequência a Pequim, dei aulas em Xangai, dei muitas palestras em toda a China. O chinês está a modernizar-se de uma forma brutal, quer crescer. Em 2049, Macau vai encontrar uma China moderna, robotizada, informatizada e humanamente ainda mais apetrechada e equilibrada. Portanto vai abraçar Macau no seu melhor. Mas Macau tem de perceber que havendo o princípio Um País, Dois Sistemas há que respeitar o primeiro sistema. Se o souberem fazer, tudo correrá bem. Ainda que podendo desenvolver todas as formas de autonomia que temos, é levar este exercício ao extremo. Sou um otimista. 

– Falou em Hong Kong. Quando inaugurou a exposição, descreveu os manifestantes como um movimento de mercenários.

C.M. – Estão em vários desenhos. 

– Como é que olha para o movimento?

C.M. – Muito negativamente. No meio dos jovens que o iniciaram, com a generosidade típica dos jovens, há muitos inflamados por uma democracia plena e direta, alguns ingénuos mas a grande maioria é mercenária. Não têm um objetivo político, não têm um programa politico, espremem-nos e não têm sumo, é só a violência pela violência. Violência gratuita e planfetária, e vandalismo ao ponto de se bater em inocentes, em velhos, em grávidas, vandalizando tudo que é do erário público. A única coisa que sabem dizer é liberdade. Mas não têm liberdade? 

– Acha que é uma luta sem causas?

C.M. – Se não tivessem liberdade, podiam fazer o que fazem? Isto devia ter acontecido no primeiro mundo… e depois essa conversa de alguns intelectuais e jornalistas de Macau que dizem que os protestos foram pacíficos. Nunca foram pacíficos. Só uma polícia civilizada e bem preparada como a de Hong Kong é possível que ainda não tenha havido mortes. Assaltaram o parlamento que é um símbolo de soberania. Imagine-se isto em Wanshington, ia para lá o Exército, quantas pessoas não teriam morrido. A polícia de Hong Kong acusada de violência e depois há um coro egoísta de todo o ocidente com as fake news a falar disso. Tenho visto todos os dias no canal da TVB, nunca vi a polícia ser violenta. E posso dizê-lo porque estive no 25 de Abril, levei tareia da polícia. Também lhes bati. Sei o que é a polícia nestes momentos, especialmente a de choque. É de uma dureza do tipo gladiador. Esta de Hong Kong foi doce, doce de mais.

– Sente que as autoridades estão a ser injustiçadas?

C.M. – Nunca tive tanta simpatia pela polícia, de quem falava mal pela sua brutalidade no ocidente. Isto vai acabar mal. A China tem feito o que deve fazer: conter-se. Percebo que a liderança chinesa já está a perder  a paciência. São cinco meses de violência gratuita. Sempre acreditei que havia elementos exteriores de agitação no Movimento dos Guarda-Chuvas. Aparecem nos meus desenhos porque é uma notícia. Ainda que pela negativa, marca a atualidade. Sob o ponto de vista de engenharia militar, é um movimento fantástico: organizam-se pelo GPS, têm fileiras de produção de cocktails molotovs e outros esquemas incendiários, têm logística e uma forma de comunicação próprias. Para não referir o grau de sofisticação do seu equipamento. Parecem um exército: man in black, com as máscaras de gás, com muita pinta. Acredito que está lá o dedinho daquelas organizações que formam militares e manifestantes para derrubar Governos, para fazer de Hong Kong essa situação impossível.

– Voltando à parte pessoal: tem uma carreira vasta. O que está por cumprir?

C.M. – Tanta coisa. Comecei muito cedo, tanto em Macau como em Lisboa. Ocupei cargos, ganhei prémios, fui condecorado por dois governadores e um Chefe do Executivo, por um Presidente da República, tudo muito jovem. Fui presidente do Instituto Cultural (IC) numa altura de transição. Mas digo-lhe que há tanta coisa por fazer. Há uma coisa que estou a gostar muito de experimentar: ser avô. Ainda sou avô a aprender a ser avô.

– E ao nível profissional?

C.M. – Não tenho nenhum sonho especial já. Estou a preparar as pessoas para pegarem no ateliê, para continuarem a fazer boa Arquitectura, preservar o património, arquitectura identitária de Macau. Nunca fui nem carreirista nem de ganhar dinheiro. Claro que gosto de ter poder de compra, gosto de viajar, gosto de jantar bem e da boa pinga, e para tudo isto é preciso dinheiro e eu tenho trabalhado para isso. Queria em breve deixar o ateliê e dedicar-me à pintura, à literatura, à filantropia e à proteção do ambiente e dos animais. Estes são os meus sonhos.

– Nunca pensou noutra área? Segundo o que sei pensou em Direito.

C.M. – Tinha professores que achavam que iria para Artes e outros que diziam que ia para Direito, porque refilava muito, tinha sentido de justiça social e era bom em lógica no racíocinio. Voltaria a fazer a mesma escolha. Claro que uma pessoa tem de ter sorte e eu tive sorte. Mas voltaria a escolher Arquitetura porque acho que é a ponte entre a arte, literatura, ciência e tecnologia, mas não deixaria de ter medo de ser advogado ou médico, que achava que era uma profissão quadrada. Hoje acho que é mentira. Os médicos são muito criativos. O Direito tem-me desiludido porque os advogados estão cada vez mais associados ao poder e ao dinheiro. Portugal é um bom exemplo, onde os ricos não vão para a cadeia, mas os pobres estão lá. 

– Nunca pensou em viver e trabalhar noutro sítio?

C.M. – Disseram-me para não vir para Macau e ir para Nova Iorque. Fui sempre um dos melhores ou o melhor aluno do ano em Arquitetura. Diziam que devia ir para Nova Iorque e teria um futuro brilhante. Mas eu disse que não. Prometi voltar a Macau. Os portugueses e os macaenses perderam muito porque ninguém regressava. O macaense deixou de ser um bocado antena em Macau por culpa deles, por não vir, e o português por não investir. A minha geração, eu, o Leonel Alves, o Manuel Azedo, o Sales Marques, dissemos que queríamos estudar e colocar ao serviço de Macau o que aprendêssemos.

– Não se arrepende?

C.M. – Não. Estou muito feliz. Muito mesmo. Há muita mediocridade em Macau a começar pelo poder, e a estender-se na privada como vemos pela atuação dos casineiros. Voltar a Macau com 26 anos, viajar por todo o mundo, conhecer a China, aprender em congressos com leitura… Macau é fantástico se não deixarmos crescerem borbulhas nas nossas nalgas por estarmos sempre sentados numa poltrona. Aqui as pessoas gostam de correr para o terceiro e para o quarto lugares. Para sermos bons em Macau temos de lutar para sermos bons em Berlim, em Tóquio, em Nova Iorque ou em Lisboa. Temos de correr para sermos os melhores do mundo. Não somos reconhecidos no resto do mundo porque Macau apesar de tudo é periférica. Tenho a mesma dedicação para um prédio de dois andares como para um de dez, e tenho a mesma dedicação para uma exposição aqui como no maior palco do mundo. Voltaria a fazer tudo de novo. 

Catarina Brites Soares  | ‮٩‬د‭ Fotos: GONÇALO LOBO PINHEIRO

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