“Hong Kong tem uma alma que precisa de espaço para respirar”

por Arsenio Reis

É preciso salvar o princípio Um País, Dois Sistemas. Christine Loh defende um processo de diálogo e reconciliação para sair da crise. 

A antiga subsecretária do ambiente do Governo de Hong Kong – liderado por CY Leung – está apostada em promover uma nova plataforma de diálogo, verdade e reconciliação para resolver a crise profunda em que a cidade vizinha se encontra mergulhada há mais de três meses. Em entrevista ao PLATAFORMA, Christine Loh faz um apelo à moderação e a Pequim que compreenda melhor a sociedade de Hong Kong, que tem uma tradição liberal que não é anti-China, mas sim um pilar crucial no princípio Um País, Dois Sistemas. Para isso, lança um repto às vozes do “centro político” que se levantem, aos manifestantes que cessem a violência, ao Governo local que tenha capacidade de agir para resolver os problemas sociais e ao Governo central que confie na população.

– O que pensa das medidas anunciadas por Carrie Lam, incluindo a retirada formal da lei extradição, que esteve na origem desta crise que perdura há 15 semanas?  Será suficiente para começar a desatar este nó górdio?

Christine Loh – A retirada formal da proposta de lei de extradição é um passo importante, uma vez que sinaliza que foi estendido um ramo de oliveira para aliviar as tensões. A ala mais radical do movimento, todavia, não aceitou este gesto, tendo continuado com ações disruptivas. A questão central é como a maioria da população reagirá a este gesto. Será que vão encarar estas medias como uma oportunidade para reduzir as tensões? Se sim, então haverá menos energia a alimentar os protestos, mas isso vai demorar tempo. O que Hong Kong lidará é com um “novo normal” de tensões e disrupções aos fim-de-semana. No entanto, se o Governo tiver a capacidade de dar a volta à situação, então essas disrupções e tensões diminuirão com o tempo e a maioria da população focar-se-á na necessidade de reparar os danos através da participação num plano do Governo de diálogo com a comunidade. 

– Num artigo de opinião que publicou na The Economist, fez um pedido a Pequim que aceite correr riscos relacionados com o “centro político”. Poderá esta perfectiva de uma linha moderada do caminho do meio ser reconstruída face a um ambiente tão tenso e polarizado?  

C. L.   O centro político em Hong Kong é composto pelas pessoas que querem que o princípio Um País, Dois Sistemas  tenha sucesso. São pessoas que que também estimam o alto grau de autonomia, como previsto na Lei Básica, e que defendem a reforma do sistema administrativo e eleitoral. Este grupo de pessoas querem ver reformas colocadas em prática para que Hong Kong possa progredir as políticas sócio-económicas para o benefício de todos os sectores da sociedade num mundo altamente competitivo. O centro político é de cariz liberal, e estima as liberdades e modo de vida de Hong Kong, que também são protegidos na Lei Básica. Pequim não mostrou confiança suficiente neste campo político ao colocar  em posições chave sobretudo figuras consideradas “seguras” no sistema político. Isto mostra que Pequim ainda não percebe bem as pessoas de Hong Kong. 

– Quem é que poderá emergir na sociedade de Hong Kong como mediador, que possam ser mutuamente aceites, desempenhando um papel central para a resolução desta crise? 

C. L.   Num tempo de crise, Hong Kong necessita de pessoas que estejam no “centro político” para agirem como pacificadores e mediadores. São pessoas que nutrem simpatia pelos diferentes lados do conflito e que julgam que o Governo subestimou a complexidade legal e política na procura de legislar a lei de extradição, acabando esse erro por levar aos protestos em massa. Estas pessoas que desempenharão esse papel de mediação também aceitam que a Chefe do Executivo tem um papel para desempenhar na resolução da crise.  Simultaneamente, reconhecem o desejo dos manifestantes em proteger os valores chave de Hong Kong, embora não possam aceitar a violência e as continuas disrupções levadas a cabo em nome da liberdade e justiça. Os mediadores também percebem as dificuldades enfrentadas pela polícia e, apesar de apreciarem alguma contenção, não apoiam os abusos e desejam que seja levado a cabo um processo adequado para lidar com as queixas dos cidadãos contra a polícia. Acima de tudo, o centro político sabe que o princípio Um País, Dois Sistemas é a melhor opção disponível para Hong Kong e que as pessoas de Hong Kong devem fazer com que funcione. 

– Sugeriu a criação de um órgão semelhante a uma comissão de verdade reconciliação. Como poderia ser alcançado esse objetivo? 

C. L.    A minha premissa base é que os seres humanos resolvem os problemas ao falarem uns com os outros. Os conflitos podem perdurar por um longo período de tempo, mas são resolvidos através do diálogo. A situação em que Hong Kong se encontra é séria, mas menos dramática que outras como o que se viveu na África do Sul ou na Irlanda do Norte. O diálogo para a reconciliação é um processo que visa a reconstrução da confiança entre os lados do conflito. É um passo importante para que todos os lados se possam ouvir uns aos outros. A famosa Comissão da Verdade e Reconciliação da África do Sul permitiu às pessoas falarem o que sentiam e viam como a verdade para todos ouvirem. Hong Kong pode beneficiar em termos um processo organizado em que as pessoas possam dizer o que pensam, libertando tensões. A partir daí, a sociedade pode considerar a forma de abordar os problemas e seguir em frente. Deste modo, o diálogo é um instrumento para a reconciliação. 

– Desempenhou o cargo de subsecretária para o Ambiente no Governo liderado por CY Leung. Nessa altura ,já identificava a dimensão do descontentamento que temos visto nas ruas nestas semanas?  

C. L.    Tenho conhecimento e testemunhei a frustração das pessoas ao longo dos anos relativamente a várias matérias políticas,  como por exemplo planeamento urbanístico, transportes e ambiente. Também sei da frustração dos que ambicionam uma reforma política. Em 2012, testemunhei a fúria de pais com a promoção do plano de educação nacional que teve início ainda sob a  égide de Donald Tsang como Chefe do Executivo e depois tivemos o Movimento dos Guarda-Chuvas em 2014. Todos esses assuntos poderiam voltar a acender os ânimos. O que não antecipava era a determinação dos manifestantes de hoje em dia em causar distúrbios e disrupções à economia bem como o crescente nível de violência, acreditando esses jovens que esses métodos podem levar a uma melhoria da situação. As manifestações de massas pacíficas foram impressionantes, mas é muito perturbador que tenham degenerado numa espécie de guerrilha urbana. 

– Poderá o espectro de uma intervenção militar tornar-se numa autoprofecia que se autorrealiza? Como evitar cair nessa armadilha? 

C. L.  – Espero que isso não venha a acontecer. A situação de Hong Kong não está ainda num nível que não possa ser lidado pelas autoridades de Hong Kong. A polícia de Hong Kong tem a capacidade para aplicar uma força maior, algo que ninguém deseja que venha a suceder. Mais de 1100 manifestantes fora detidos e estão em marcha processos judiciais contra eles. Vamos esperar que haja uma redução da violência nesta fase.    

– Os manifestantes e figuras da oposição têm feito uma campanha para a internacionalização da questão de Hong Kong, pedindo a intervenção dos Estados Unidos – através do Hong Kong Human Rights and Democracy Act  – Reino Unido ou mesmo Nações Unidas. Como encara isto? 

C. L.    As pessoas de Hong Kong devem confiar nelas próprias para fazer o princípio Um País, Dois Sistemas funcionar e para construírem uma relação robusta e positiva com as autoridades do Governo central. Os poderes estrangeiros têm os próprios interesses face à China e esses interesses não estão necessariamente alinhados com o que melhor serve Hong Kong. Acredito que as pessoas de Hong Kong precisam de se focar nelas mesmas na procura das mudanças que ambicionam em vez de pedirem auxílio a países ocidentais. 

– A China tem procurado levar a sua mensagem ao mundo para contar o seu lado desta história. Mas a narrativa de Pequim é difícil de passar. Que conselho tem para o Governo central? 

C. L.  – A China encara o mundo de uma forma muito diferente do Ocidente liberal pelo que essa narrativa tem muitas dificuldades em passar. Não se trata tanto da China poder melhorar a sua mensagem, mas sim se pode aceitar que Hong Kong tem uma alma liberal que precisa de espaço para respirar. Essa alma liberal não é anti-China. Ao mesmo tempo, espero que as pessoas de Hong Kong possam dedicar algum tempo a perceber o sistema da China continental e a sua retórica política para que os dois lados possam encontrar uma nova via de comunicação que tenha eco internacionalmente. Não é fácil, mas isso levaria a um avanço decisivo na prática bem sucedida do principio Um País Dois Sistemas. 

– O futuro do princípio Um País, Dois Sistemas tem sido alvo de grande dúvidas. Como encara o estatuto futuro de Hong Kong dentro da China? 

C. L.   Um País, Dois Sistemas é algo de bom. É uma experiência política nova para Pequim, bem como para Hong Kong. O nosso esforço vai no sentido de fazer com que funcione e não em destruí-lo.  

José Carlos Matias 20.09.2019

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