A pedra no sapato com a Austrália

por Arsenio Reis

Scott Morrison, primeiro-ministro, australiano, queria que a sua visita de menos de 24 horas a Díli servisse como um sinal de um “novo capítulo” na relação bilateral entre a Austrália e Timor-Leste. Um momento de limpar o passado, agora que, finalmente, Camberra aceitou que a fronteira marítima entre os dois países está onde primeiro Portugal (como colonizador), depois a Indonésia (como ocupante) e finalmente os timorenses (independentes) sempre tinham dito que deveria ficar: a meio caminho entre os dois países. 

O tratado marítimo de fronteiras permanentes entre os dois países, que entrou oficialmente em vigor a 30 de agosto – dia em que os timorenses celebraram 20 anos do referendo de independência – corrigiu uma disputa fronteiriça que permitiu à Austrália receber cinco mil milhões de dólares norte-americanos provenientes de recursos claramente em águas timorenses, como a nova fronteira demonstra.

Para o Governo australiano a fronteira, primeiro, e o aniversário da força internacional liderada pela Austrália, a INTERFET – que entrou em Díli depois de 15 dias de violência pós-referendo, a 20 de setembro de 1999 – são oportunidades para limpar um passado manchado por comportamentos negativos e sucessivos de Governos australianos.

Para Camberra, porém, os objetivos acabaram por não se cumprir. No meio da pompa e da celebração, a postura contraditória da Austrália relativamente a Timor-Leste voltou a evidenciar-se, com o relacionamento entre Díli e Camberra a continuar a ser afetado, neste caso, por um julgamento que muitos criticam.

O caso da “testemunha k” e Collaery tem-se tornado numa questão diplomática entre Timor-Leste e a Austrália, tendo o ex-Presidente timorense Xanana Gusmão afirmado que pode testemunhar num tribunal em Camberra se as autoridades australianas não abandonarem o processo.

A “testemunha K” e Collaery são acusados de conspiração pelas autoridades em Camberra, crime que tem uma pena máxima de dois anos de prisão, e estão a ser julgados num tribunal australiano.

Os dois foram acusados no ano passado de conspirar para revelar informações protegidas pela lei dos serviços secretos, que abrange o sigilo e a comunicação não autorizada de informação, num processo envolto em segredo.

A tensão à volta do caso evidenciou-se no único momento de diálogo de Morrison com os jornalistas durante a visita a Díli. Numa conferência de imprensa conjunta depois de uma reunião bilateral com o homólogo timorense, Taur Matan Ruak, o chefe do Governo australiano tentou canalizar a mensagem para o “novo capítulo” da relação.

As perguntas dos jornalistas, porém, não foram tão favoráveis à narrativa de Morrison.

Metade das questões – tinham sido dadas duas perguntas a jornalistas de Timor-Leste e duas a jornalistas australianos – foram todas sobre o que é hoje a ‘pedra no sapato’ da relação bilateral.

Sem comentários

O julgamento na Austrália de um ex-espião e do advogado, que denunciaram espionagem australiana a Timor-Leste durante a negociação do tratado anterior ao atual foi o tema de quatro das perguntas.

“É uma questão doméstica, que está atualmente nos tribunais e que não quero comentar. O importante aqui é a questão da fronteira, algo por que trabalhamos durante muitos anos e que hoje concluímos”, disse Morrison, numa resposta, praticamente ecoada por Taur Matan Ruak.

As restantes perguntas centraram-se num dos elementos do tratado, nomeadamente o facto de estar garantido que a Austrália não pagará qualquer compensação a Timor-Leste pelos fundos que recebeu de recursos provenientes do Mar de Timor.

“Iniciámos um processo para alcançar um acordo. Alcançamos esse acordo como parceiros e esse é o acordo que temos. O que a Austrália tem feito é investir como principal parceiro em Timor-Leste, investindo 1,7 mil milhões nos vários programas em curso”, disse.

Fora do interesse dos media ficaram os anúncios de Scott Morrison que repetidamente falou do tratado como marca de um “novo capítulo” na relação bilateral.

“Há muito mais que podemos fazer. A nossa relação é de longa data, há um sentimento de conexão presente e vai perdurar no futuro. Nos últimos 20 anos, a Austrália e Timor-Leste trabalharam conjuntamente para melhorar a segurança mútua”, acrescentou.

Enaltecendo os progressos conseguidos, Morrison anunciou apoio na ligação de fibra ótica para a Austrália, numa primeira fase no processo de engenharia e desempenho, e depois na procura de soluções de financiamento do projeto.

Anunciou ainda apoio australiano para a construção e melhoria da base naval de Hera, no âmbito do apoio mais amplo da Austrália ao setor da segurança marítima.

Também Taur Matan Ruak falou do “novo capítulo” da relação, da forte e estreita cooperação que tem existido e da troca de notas que hoje marca a entrada em vigor do tratado de fronteiras marítimas.

Caso K ao quadrado

A conferência de imprensa não foi o único momento em que o caso de “K” e Collaery dominou as atenções.

Horas antes da conferência de imprensa, Sherley Shackelton, viúva de um dos cinco jornalistas australianos mortos em Timor-Leste em 1975 entregou à ministra dos Negócios Estrangeiros australiana uma petição para que Camberra abandone o julgamento dois dois homens.

A ativista por Timor-Leste conseguiu entregar a petição depois de ter acesso ao interior do Ministério das Finanças, em Díli, onde decorria um almoço oficial por ocasião dos 20 anos do referendo de independência oferecido por Taur Matan Ruak.

Shackelton não chegou a ser travada no edifíco, correndo depois atrás do primeiro-ministro australiano, Scott Morrison, acabando por ser interpelada pela ministra dos Negócios Estrangeiros, Marisa Payne, que recebeu a petição. 

A cidadã australiana decidiu oferecer-se para entregar a petição porque cidadãos timorenses não estavam a conseguir chegar às delegações oficiais presentes em Díli A petição tem mais de 4.300 assinaturas recolhidas junto de cidadãos timorenses nos últimos dias e pede ao Governo australiano que abandone o julgamento de um ex-espião, conhecido apenas como “testemunha k” e do seu advogado – de Timor-Leste – Bernard Collaery.

A entrega da petição foi a segunda ação do dia em Díli contra o julgamento, com um grupo de manifestantes a desafiar uma proibição de manifestações na capital, colocando num barco à frente do Palácio do Governo uma faixa em protesto.

A pequena faixa foi colocada numa embarcação ao início da manhã, junto à costa em frente ao Palácio do Governo, onde os primeiros-ministros de Timor-Leste, Taur Matan Ruak e da Austrália, Scott Morrison, formalizaram a entrada em vigor do tratado de fronteiras marítimas.

A petição e o protesto simbólico foram ambos organizados por elementos do Movimento Contra Ocupação Mar de Timor (MKOTT), o grupo mais vocal na crítica à decisão australiana de julgar por conspiração um ex-espião e um ex-advogado de Timor-Leste, Bernard Collaery.

Numa nota à imprensa, a MKOTT diz que o julgamento está a “manchar as relações bilaterais da Austrália e de Timor-Leste”. 

“As celebrações dos 30 de agosto de 2019, particularmente a ratificação do Tratado de fronteira marítima, não ficarão sem a liberdade de Bernard Collaery e da testemunha, heróis e grandes amigos do povo de Timor-Leste”, refere o comunicado.

“Se a sua acusação continuar, isso só mostrará que o Governo da Austrália entrou no Tratado de fronteira marítima com Timor-Leste de má-fé e isso continuará a perturbar as nossas relações bilaterais. 

António Sampaio 13.09.2019

Pode também interessar

Contate-nos

Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

Plataforma Studio

Newsletter

Subscreva a Newsletter Plataforma para se manter a par de tudo!