“As minhas declarações foram tiradas de contexto”

por Arsenio Reis

A cônsul-geral das Filipinas em Macau afirma que o que disse aos jornalistas sobre os trabalhadores filipinos foi descontextualizado. Em entrevista ao PLATAFORMA, num tom pesaroso, Lilybeth R. Deapera garante que faz tudo para proteger a comunidade. Demitir-se, apesar da polémica, nunca esteve nos planos. A diplomata concorda que é ridículo o argumento do Governo para excluir as empregadas domésticas do salário mínimo mas, ressalva, é preciso lembrar que aqui são “convidadas”. 

– Que balanço faz dos quatro anos como cônsul?

Lilybeth R. Deapera – O desenvolvimento da economia, a segurança nacional e a comunidade filipina têm sido as nossas prioridades. Por exemplo, ao nível do desenvolvimento económico temos tentado perceber junto de empresários, turistas e outras partes interessadas como podemos melhorar as chegadas ao país. Também estamos em cooperação com o Governo local, por exemplo na organização de seminários para os trabalhadores filipinos sobre a Lei Laboral.

– Considera que tem defendido bem a comunidade?

L.R.D. – Temos encontros com os organismos do Governo local, nos quais temos oportunidade de expressar o que é desejável para os trabalhadores emigrantes. Mas é preciso lembrar que somos convidados e temos de aceitar quando o Governo diz que não pode fazer mais. 

– Fez declarações polémicas a propósito dos trabalhadores filipinos que fez com que alguns grupos ficassem revoltados e a acusassem de “falta de sensibilidade”.

L.R.D. – Mas é verdade o que disse, certo? Se há vezes em Macau que não se valorizam os trabalhadores filipinos, ainda que o devessem fazer, não lhes posso dizer para ficarem aqui.

– Mas em vez de lhes dizer para se irem embora não devia pressionar o Governo local no sentido de os proteger?

L.R.D. – Mas temos feito isso. Estamos em permanente diálogo e temos insistido nas condições que Macau devia considerar, mas, como disse antes, somos convidados, e se a situação não pode ser alterada, e um trabalhador sente que não é saudável continuar a trabalhar aqui, e foi por isso que disse o que disse, tem a opção de não trabalhar aqui.

– Sente que o Governo local está realmente preocupado?

L.R.D. – Sinto que ouvem. O facto de continuarmos a falar sobre estes assuntos e a encontrarmo-nos por causa deles é um bom sinal. Não se pode forçar a situação. Há muitas partes. Até pode acontecer que a Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais (DSAL) esteja de acordo mas que outros setores da sociedade não, e têm de encontrar um equilibrio. Não podemos forçar as nossas ideias, o que gostaríamos. Tem de se conseguir um compromisso que seja benéfico para Macau e para os trabalhadores filipinos. 

– O Governo faz tudo o que pode para melhorar a vida destas pessoas?

L.R.D. – Do que tenho visto, o Governo tem realmente feito tudo o que pode. Por exemplo, no que diz respeito ao salário. Sei que têm um padrão. Quer isto dizer que, apesar de não haver uma lei que preveja um salário mínimo para as empregadas domésticas, têm um patamar em conta e que é próximo ou tão bom como o que desejávamos.

– A média salarial das empregadas domésticas é 4100 patacas. Grupos que as representam dizem que há quem ganhe menos. Sabe se isso acontece? E acha que 4100 patacas é suficiente?

L.R.D. – Definitivamente, não é suficiente. Sobre a outra questão, é uma informação que não temos. Nunca ninguém veio aqui queixar-se que recebe, por exemplo, 2100 patacas por mês.

– Nunca recebeu queixas, nem pedidos de apoio porque recebem pouco?

L.R.D. – Nunca. Agora, a DSAL pede os contratos para verificar e quando o salário previsto está longe do standard, os trabalhadores são avisados de que é inaceitável. Não temos dados sobre quantas pessoas recebem abaixo do tal patamar estipulado pela DSAL. Se esses grupos alegam que há pessoas nessa condição, devia perguntar-se se sabem quantos são para que pudéssemos dar essa informação à DSAL e dizer-lhes que, apesar de dizerem que existe um padrão, há um número de filipinos que recebe menos. Mas não temos esses dados.

– Outra queixa que fazem é de que há vezes que não lhes dão comida nem alojamento como prometeram porque não há uma lei que obrigue a isso e não está estipulado no contrato. 

L.R.D. – Mesmo quando prometem? Mas nesse caso devem garantir de que está no contrato, que prevê as condições prometidas por ambas as partes. Se há o acordo de que teriam alimentação, porque não asseguraram que isso está no contrato?

– Sabemos que a maioria dos trabalhadores que exercem funções como empregados domésticos são essencialmente mulheres, pobres e numa situação frágil. Acha que estão em condições intelectuais e emocionais para exigir e pressionar o empregador?

L.R.D. – É por isso que estamos a desencorajar as pessoas a virem para aqui à procura de emprego. O sistema de recrutamento para o estrangeiro das Filipinas garante que o Governo protege os direitos dos trabalhadores. Como podemos saber que essa pessoa precisa de apoio se optarem por não passar pelo sistema e virem como turistas? Se passarem pelo sistema, sabemos, por exemplo, que em determinado mês temos 10 que vão pela agência A. Se as condições não forem cumpridas pelo empregador, podemos pedir contas à agência. Temos meios contra os empregadores e a agência. Se não for assim, não temos como os ajudar.

– Uma das vantagens de Macau é que permite que venham como turistas e procurem emprego o que, aparentemente, é benéfico porque podem conhecer o empregador e, essencialmente, não têm de se endividar para pagarem à agência de emprego. Ainda assim considera que é melhor a agência?

L.R.D. – Mas por meio do nosso sistema não têm de pagar à agência. São os empregadores que pagam pela contratação à agência de emprego. De acordo com a nossa lei, esse é um requisito. O que acontece em Macau, segundo sei, é que vem como turistas, abordam as agências e algumas exigem que paguem, o que é ilegal de acordo com a legislação atual.

– Pode explicar-me melhor como funciona o vosso sistema?

L.R.D. – Há uma aviso sobre necessidade de mão-de-obra num país. Abrem-se candidaturas. No caso das empregadas domésticas, por exemplo, têm de reunir requisitos: ter um certificado que comprova que podem fazer trabalho doméstico, que são saudáveis, que passaram nos exames médicos, que têm um conhecimento básico da língua. Por exemplo, se vierem para Macau, têm de ter o mínimo conhecimento de cantonês para que não fiquem completamente desamparadas. O empregador tem de de pagar o passaporte, o seguro médico, a viagem. 

– Sente que as condições para os trabalhadores filipinos melhoraram?

L.R.D. – Nos seminários organizados pela DSAL, Cáritas e por nós, há trabalhadores que se queixam contra empregadores que os obrigam a fazer trabalhos que não estavam previstos no contrato ou no blue card, e a DSAL insiste que têm o direito de se queixarem ao Governo. O facto de haver estes seminários e a oportunidade de os consciencializar sobre os seus direitos e responsabilidades é um bom sinal. É uma melhoria. O Governo local tem noção de que há maus empregadores e incentivam-nos a denunciar essas situações para que as possam resolver.

– Sabemos que em muitos casos não se queixam porque têm medo. Como se pode ajudar essas pessoas?

L.R.D. – Há sempre um risco quando lutamos pelos nossos direitos. Fazemos tudo o que podemos e é por isso que incentivamos que venham pela via legal, porque temos meios contra as agências que não querem perder a acreditação. Nos seminários e encontros, insistimos para que se informem da lei quando vem como turistas e saibam que podem recorrer à DSAL caso algo corra mal. Tomaram a decisão de virem procurar de emprego e conseguiram. Também têm de tomar a decisão de irem à DSAL e denunciarem quando sentem que estão a ser desrespeitados e vítimas de abusos. Mesmo que os queiramos ajudar, como é que podemos fazê-lo se não temos essa informação? Quantos são, onde estão? Podem sempre procurar-nos, o nosso escritório para os assuntos laborais está sempre aberto para os ajudar-mos. Não sei como podemos ajudar, se não vierem ter connosco e apenas se queixarem.

– O Governo justificou a exclusão dos trabalhadores domésticos da lei de salário mínimo com o facto de “os empregadores não obterem lucro”, um argumento fortemente criticado pela Organização Internacional do Trabalho. 

L.R.D. – Concordo que é um argumento ridículo. Se tenho uma empregada doméstica e posso ir para o trabalho, mesmo que o serviço dela não me dê dinheiro… Concordo que é ridículo mas esta é a forma como o Governo e deputados pensam. O que sei também é que há muitos empregadores que pagam acima da média estipulada pelo Governo porque sabem que, sem as empregadas domésticas, estariam impedidos de ir trabalhar e ganharem dinheiro. É por isso que insisto: não há motivos para ficar quando não se não se está satisfeito com o empregador. 

– Pode explicar-se melhor?

L.R.D. – Tenho a certeza de que se não houver alguém para tomar conta do idoso, alguém vai ter de ficar em casa ou vai ter de se arranjar uma solução. Têm de pensar nisto quando não se sentem apreciados. Se sentem que estão a ser explorados, devem procurar outra família. Das primeiras coisas que senti da parte do Governo de Macau é que valorizam os trabalhadores, sabem que o desenvolvimento de Macau também se deve ao trabalho dos empregados domésticos. 

– Associações de empregadas domésticas criaram uma petição na qual exigiam a sua demissão por causa das declarações que fez. Considerou demitir-se?

L.R.D. – Não. Sei o que tenho feito. As minhas declarações foram tiradas de contexto. Em vez de virem ter comigo e me perguntarem o que disse, decidiram criar uma petição. Estão no seu direito. Porque deveria considerar demitir-me quando estou consciente do meu trabalho? 

– Tem números sobre a emigração filipina para Macau?

 L.R.D. -Não temos estatísticas. Sabemos que tem aumentado, mas não sabemos se vêm como turistas ou através das agências. 

– Qual é o valor das remessas dos filipinos em Macau e que impacto têm na economia do país?

L.R.D. – Não temos números relativos às remessas dos emigrantes filipinos de Macau. Isto porque muitas vezes enviam dinheiro através de bancos estrangeiros e quando assim é não é registado como dinheiro que vem do local onde trabalham mas sim da origem do banco.

– Afirmou que o Governo está a fazer tudo “para que aqueles que estão a trabalhar no estrangeiro possam voltar para casa e ter emprego nas Filipinas”. O quê concretamente?

L.R.D. – Em Macau, temos um curso anual de seis meses de empreendedorismo, realizado com a Universidade de Manila, no qual se ensina a gerir finanças, noções de liderança e a criar um negócio porque sabemos que às vezes têm meios, mas não têm o know-how. Este curso também os incentiva a estabelecer um negócio que seja socialmente relevante, por exemplo ao nível da proteção ambiental e dedicados a alguns grupos marginalizados, e não apenas economicamente lucrativos. Também providenciamos cursos de massagens, bartender, culinária. O Governo dá um empréstimo a filipinos que queiram voltar para começarem. 

O que disse

“Não creio que realmente enfrentem qualquer dificuldade, continuam a sentir-se bem-vindos em Macau, é por isso que vêm. Bem, há o problema habitual do alto custo de vida, seria uma das coisas que é um desafio para alguns”, dizia em junho, a cônsul, à margem da celebração do 121º aniversário da independência das Filipinas. Numa reação à exclusão das empregadas domésticas da proposta de lei de salário mínimo, Lilybeth R. Deapera afirmou que os valores salariais “são as forças de mercado que ditam” e que “os trabalhadores podem fazer escolhas. Se acham que não é justo para eles, têm a opção de não vir trabalhar para Macau”. As declarações caíram mal a alguns membros da comunidade. Três organizações de trabalhadores imigrantes filipinos, entre as quais a Greens Philippines Migrant Workers Union, organizaram uma petição na qual exigiam a demissão da diplomata. 

Catarina Brites Soares 06.09.2019

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