“Não vejo que a absorção leve imediatamente à eliminação de todas as características”

por Arsenio Reis

No balanço dos sete anos da fundação que criou, Rui Cunha realça o trabalho no sentido de preservar a identidade da cidade. O advogado deixa um aviso: se Macau não se esforça para se mostrar, o que a faz diferente pode ter os dias contados.

– Que balanço faz dos sete anos da fundação?
Rui Cunha – Já atingimos a chapa dos mil eventos. Vamos continuar. Não tanto como no ritmo inicial, que foi para assumir e ganhar credibilidade. Agora procuraremos fazer o que é mais importante e que pode ter mais impacto social, nomeadamente dedicando-nos a temas que afetam a vida social de Macau.
– Como por exemplo?
R. C. – A integração da Grande Baía. É um tema que todos temos a obrigação de começar a pensar e preparar, de forma a permitir que Macau continue a desfrutar de uma sociedade como até agora. O projeto da Grande Baía é uma grande oportunidade mas dependerá de quanto Macau venha a fazer para ter um lugar num espaço tão grande.
– Voltarei a esse tema depois. Ainda sobre a fundação, há alguma iniciativa que lhe tenha dado especial satisfação organizar?
R. C. – Gostaria mais de referir os projetos de natureza cultural que incentivamos e que podemos ver que outras organizações estão a seguir. Era um dos objetivos da fundação e creio que conseguimos: trazer ao de cima a necessidade de diferentes entidades, de organizar eventos para que a sociedade vá evoluindo no sentido de haver um ambiente em que as pessoas tenham oportunidade de divagar, pensar, escrever, cantar. Tudo que seja de natureza não imediatamente lucrativa.
– Devia haver mais gente a seguir o seu exemplo, tendo em conta que é uma terra com tanto dinheiro?
R. C. – O caminho de excesso pode não ser saudável. Quando há abundância, às vezes as pessoas perdem a apetência. Não creio que a quantidade resolvesse o problema. É muito mais importante apostar cada vez mais em pessoas que possam ter qualidade e uma posição de relevo.
– Há muita oferta e apoios. Acha que tem havido critério, e que se tem promovido a excelência?
R. C. – É difícil classificar. A escolha dos critérios é muito subjetiva. Às vezes é preciso ir por tentativas. Mas tem de haver iniciativas e certamente das muitas que têm lugar, algumas vão ter resultados. Falo do caso da fundação. Do historial de mil eventos, já tivemos não digo falhanços, mas alguns que não tiveram seguimento. Em todas as manifestações artísticas, cria-se sempre um círculo em que não é fácil entrar e quando se está não é fácil manter-se. A maior dificuldade é encontrar o escadote que nos conduz ao círculo.
– A fundação tem procurado ser essa alavanca?
R. C. – É nisso que tem apostado. Aproveitando as oportunidades que a Grande Baía vai trazer, vamos tentar fazer intercâmbio com outras instituições espalhadas pela região. Abriu-se um leque maior e vamos tentar levar artistas de Macau para outros sítios. Vão poder beneficiar de uma coisa que Macau não tem: um mercado de arte.
– A fundação foi uma forma de retribuir a Macau?
R. C. – Foi exatamente uma retribuição que vi e que me era exigida pelo facto de atingir um certo desafogo material pelos 30 anos que aqui trabalhei e que doutra forma possivelmente não teria. A partilha do que recebemos de bom é extremamente importante. Nem a todos sai a sorte grande, mas a quem sai deve fazer alguma partilha. Decidi que esta fundação deve ir fazendo coisas no sentido de retribuir à sociedade e dar oportunidade a outros de ter sucesso, que pode nem passar pelo material mas que lhes permita sentir e considerar que a vida tem algum sentido, e que a vivência numa sociedade tem alguma razão de ser.
– Quer apostar na descentralização. Pode explicar melhor a ideia?
R. C. – Foi um objetivo desde o início. Não criamos a fundação para servir um determinado estrato social, grupo ou uma parte da sociedade, mas sim toda a cidade. Parte dos eventos, e mesmo a repetição de alguns, vai passar a ser feita noutros locais. Além disso, há projetos que podem ser transportados sem grande dificuldade, como as classes de piano.
– Tem feito um esforço também para preservar o sistema de Direito local. Porque sentiu essa necessidade?
R. C. – Com a transição, o Direito ficou bastante órfão. Se até então, era fácil colmatar a falta de normas e garantir que a aplicação das mesmas podia ser supervisionada diretamente por Portugal, depois houve um corte. Temos um Direito de Macau que está rodeado por um Direito chinês cada vez mais avançado, temos a pressão da praça económica que é Hong Kong, com o sistema da Common Law e não temos nenhum país próximo com um sistema de Direito semelhante ao nosso. Com o corte do cordão umbilical, podia assumir-se que haveria uma erosão ou a eliminação total. Não aconteceu e muito pelo esforço da República Popular da China, que trabalhou no sentido da preservação da identidade de Macau. Macau é o exemplo mais claro e acabado, diria no mundo inteiro, de uma mistura tão completa das culturas ocidental e oriental, e da criação de um modus vivendi que leva a esta paz e bem-estar, que todos beneficiamos e que nem sequer notamos.
– Essa identidade não acabará por desaparecer?
R. C. – Até agora foram 20 anos de graça, de uma transição muito suave em que houve uma tolerância quase completa a que tudo se mantivesse. A partir da Grande Baía surgem os grandes problemas e desafios. Agora é que vamos passar das palavras aos atos. Se Macau não fizer algum esforço para mostrar que dispõe de um sistema legal capaz de manter uma sociedade pacífica e ordeira, dando todas as condições para o bem-estar das pessoas, e que contribui validamente para o país a que pertence, corremos o risco dessa erosão ser muito rápida.
– Que deve fazer Macau para o evitar?
R. C. – Para começar tem de mostrar que tem esse Direito e julgo, sem fazer juízos de valor de quem responsável, que não se tem feito isso. Os casinos são a única coisa que o resto do país conhece de Macau. Temos de dar a conhecer que existimos, que temos princípios, caminhos bem preparados para manter uma sociedade pacífica.
– Sobre o projeto da Grande Baía, defende que ou nos mexemos ou morremos.
R. C. – Vai haver mudanças derivadas da própria estrutura que há de ser montada. Vamos ter algo semelhante à União Europeia. Vai haver diretivas e procedimentos comuns a toda a área da Grande Baía. Só assim faz sentido.
– Acha que vai continuar a haver esta preocupação com a identidade tendo em conta a linha de Pequim, sempre apologista da uniformização?
R. C. – Há de haver essa preocupação de uma certa uniformização. Se olharmos daqui a 50 anos, muito provavelmente estará tudo integrado numa grande China e a pautarem-se todos pelo mesmo. O que não leva obrigatoriamente a que seja tudo igual. Dou o exemplo, a Madeira e os Açores têm parlamento e leis próprias que não são ao contrário das do Continente, mas são próprias. Macau pode ser assim. Se mostrarmos que temos um Direito e que temos qualidade. E esse trabalho tem de ser feito aqui e não esperar que alguém o faça por nós.
– A propósito das diferentes leis que têm sido implementadas no âmbito da segurança, defendeu que Macau acaba por ser vítima do que se passa em Hong Kong. Não é contraditório uma vez que sempre foi tido como o bom aluno?
R. C. – Se tínhamos como pano de fundo Um País, Dois Sistemas qualquer mudança que venha a afetar o Segundo Sistema tem de ser aplicada em qualquer área em que vigore. Se Macau fosse premiado e Hong Kong punido, teríamos as pessoas de Hong Kong mais acicatadas. Os afloramentos que se dão em Hong Kong acabam por influenciar determinadas tomadas de posição que fazem com que Macau também apanhe. De outra forma caminharíamos no sentido de três sistemas em vez de dois. Seria um caminho perigoso.
– Falamos de aperto aos níveis da segurança e legislativo. Como olha para a decisão de que só os juízes chineses poderão decidir sobre casos respeitantes aos assuntos de segurança nacional?
R. C. – Fui juiz mais de dez anos e nunca me deixei influenciar. Não gosto pessoalmente que casos sejam entregues a tribunais especiais e que haja uma seleção de juízes. Mas compreendo que a sensibilidade de um juiz não nacional seja diferente quando tenha de julgar um caso relacionado com algo muito próprio daquela nação, sociedade ou povo. Se tivesse de dar uma opinião, teria um sistema mais mitigado, não diria assim fria e cruelmente que só juízes nacionais podem julgar estes casos porque cria uma distinção que não é saudável. Era preferível encontrar um sistema, que não é muito difícil, de reserva para determinados casos. Esse assunto tratado mais subtilmente teria mais aceitação e seria mais entendido. E toco num ponto, porque é que há juízes estrangeiros? Em países e territórios que há relativamente pouco tempo entraram em autonomia, há necessidade de se ir buscar colaboradores a países que têm algo comum para que haja qualidade na aplicação da justiça. Não deixa de ser uma pessoa que não é parte daquela sociedade.
– Há muita gente que, não sendo cidadão chinês, nasceu, vive e trabalha aqui há uma vida e que portanto não é o estrangeiro na verdadeira acepção da palavra.
R. C. – Mas não podia haver essa ressalva. Com isto, quero terminar dizendo que não sou a favor da criação de juízes e juízos especiais para determinados casos. O afastamento de outros juízes não é coisa que goste, mas compreendo em alguma medida.
– Também defende que o Segundo Sistema pode sofrer ajustes e que prefere que assim seja do que morra. A que ajustes se refere?
R. C. – Há de levar ajustes naturalmente e foi por isso que se criou uma almofada de 50 anos: para caminharmos no sentido de tudo se transformar num único sistema que poderá ter dentro de si subsistemas que podem satisfazer as comunidades locais. Nas modificações que existirão, se desaparecer o Segundo Sistema, não vão desaparecer muitas das coisas que Macau tem.
– Por exemplo?
R. C. – A forma de registo, de casamento, condições de casamento. Nada impede porque não choca com o regime nacional. Até poderá ser integralmente mantido se toda gente estiver satisfeita. A prática do Direito deve ser sempre no sentido de corresponder às necessidades que as pessoas têm. Nessa ótica, não vejo que a absorção leve imediatamente à eliminação de todas as características.
– Uma vez que falamos de futuro, o que acha de Ho Iat Seng como Chefe do Executivo?
R. C. – Não sou adivinho. Não sei se será um bom Chefe do Executivo, que faça tudo por isso. À partida é difícil fazer futurologia sobre as qualidades que tem para o cargo. Algumas terá pelos cargos que já desempenhou.
– E que balanço faz deste Governo?
R. C. – Talvez tenha ficado aquém do que poderia fazer. Neste caso, tínhamos algumas condicionantes que podiam ter afetado a que mais não se fizesse. Talvez com um pouco mais de coragem e de iniciativa poderia ter-se ido mais longe, e sedimentar as bases desta sociedade pensando já o que vai acontecer, e prevendo a integração na Grande Baía.
– Também se aproxima uma fase importante para as operadoras do jogo. É administrador e secretário-geral da SJM. Acha que há futuro, tendo em conta que agora Macau está em plena mudança, incluindo de influências?
R. C. – Pela SJM não vou falar porque não sou seu porta-voz. Posso dar a minha opinião em geral. E diria que não é tão cedo que Macau poderá livrar-se da dependência do jogo. É uma fonte de rendimento essencial para o bem-estar da população. Vai levar muito tempo. Segundo o que percebo no projeto que já esta em curso de transformar a Ilha da Montanha num centro de entretenimento como Macau, podemos visionar que vamos ter uma zona partida em duas partes com o mesmo objetivo do lazer, uma sem jogo, a outra com jogo. Isto quer dizer que mais gente virá.
– E a diversificação económica?
R. C. – Há de vir de outros setores. Não pode nem deverá ser colocada nos ombros das concessionárias de agora. No fundo estão a desenvolver um trabalho muito importante no sentido de que Macau tenha algum desafogo. Matar a galinha de ovos de ouro não é solução. O que há a fazer é por outras galinhas ao lado desta. Macau em si não dispõe de muitas oportunidades por muito que faça. Não há população suficiente que depois sustente os projetos. Quantas discotecas abriram em Macau e passados dois anos fecharam? Macau tem 600 mil habitantes e há que contar com essa população fixa para a sustentabilidade de algumas coisas. Quanto tivermos a ilha da Montanha e seis pontes que façam a ligação em que se transite com toda a facilidade, e quem sabe sem a necessidade de identificação, vai ser o complemento do jogo que existe em Macau. É um risco forçar demasiado os agentes do jogo a adotarem uma conduta diferente. Se o fizermos podemos estar a deitar fora as tais galinhas dos ovos de ouro.
– Abandonou o lugar de diretor-executivo da SJM, também está mais afastado do exercício do Direito, a que se dedica agora?
R. C. – Continuo a minha vida normal. Todas as coisas têm o seu tempo. O facto de me ver aqui no primeiro andar, quando o meu escritório é no terceiro, foi no sentido de haver essa transição. Se temos o objetivo de que os nossos projetos sejam mais longos que a nossa vivência, temos de preparar a passagem de testemunho.
– Tem novas ideias para a fundação?
R. C. – A fundação vai caminhar no sentido da sua sustentabilidade. Até agora têm sido usados os seus fundos. Agora vamos procurar fontes que assegurem a sustentabilidade sem limite temporal, que foi para isso que foi criada. Um caminho está cortado: não vamos mendigar por subsídios. Subsídios sim, para fazermos coisas em conjunto, para a própria fundação sobreviver, não. Vamos criar fontes.
– Que tem em mente?
R. C. – Vamos tentar começar a produzir conteúdos audiovisuais em chinês sobre Macau para tornar a cidade mais conhecida. Vamos organizar uma forma de implementar o ensino do português, que neste momento tem uma grande apetência na China e que não dispõe de uma estrutura capaz de lhe dar resposta. Se entrarmos por essa via, podemos arranjar uma forma de ter uma equipa que fornece esse tipo de serviços dentro daquilo que a Grande Baía pode proporcionar, porque vai haver muito intercâmbio que podemos beneficiar.
– E em termos de resultados, como está a da fundação?
R. C. – Em números redondos, do fundo inicial, que eram os 50 milhões e o financiamento que continuo a fazer, só agora estamos perto de atingir um quinto das despesas. Se mantivermos esse ritmo, temos assegurado pelo menos mais 28 anos. Louvo sempre o trabalho da equipa que tenho comigo. É a eles que se deve o mérito do que a fundação tem feito. Têm sido meus companheiros de caminhada.

Catarina Brites Soares 03.05.2019

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