“Estamos num período de rivalidade estratégica acentuada”

por Arsenio Reis

 A ligação de Júlio Pereira a Macau remonta a meados dos anos 1980. Desempenhou funções importantes na magistratura local, tendo sido número dois do então recém-criado Alto Comissário Contra a Corrupção e a Ilegalidade Administrativa. No regresso a Portugal destacou-se como secretário-geral do Sistema de Informações da República Portuguesa ao longo de 12 anos. Conhecedor profundo da língua e cultura chinesas, Júlio Pereira é autor de livros e artigos académicos sobre direito penal da China. Em entrevista ao PLATAFORMA fala da forma como a passagem por Macau e pela China o transformou, e salienta a evolução do Direito na China no passado recente. Olha para Xi Jinping como o líder forte que o Partido Comunista da China escolheu para enfrentar tempos de grandes desafios externos, numa era de rivalidade estratégica acentuada, e de riscos crescentes para direitos, liberdades e garantias à escala global.

– Viveu em Macau uma década entre 1985 e 1995. De que forma esta experiência e ligação moldaram a sua vida e a sua forma de ver o mundo?
Júlio Pereira – Aprendi muito em Macau. Foi uma vivência completamente diferente daquela que tinha. Mais tarde tive a possibilidade de estar na China a estudar durante algum tempo e encontrei um ambiente, curiosamente, mesmo o ambiente universitário, muito semelhante ao que tinha lá em Portugal, como por exemplo na forma como as pessoas se tratavam e de convívio. Gostei imenso de lá estar, de interagir com as pessoas. Viajei bastante pela China. Conheci bastantes cidades e províncias. Interessei-me naturalmente pela língua e cultura, e acho que saí daqui bastante diferente da forma como tinha chegado.
– Como disse numa entrevista, depois desta experiência concluiu que via apenas com um olho e ficou a ver com os dois.
J.P. – Sim, é verdade. No fundo, a abordagem chinesa da vida é diferente da nossa, embora os valores sejam muito semelhantes. Os valores da família e autoridade nós também tínhamos. O interesse pela natureza, pela harmonia. Por outro lado, apesar de toda essa diversidade chegamos à conclusão que os grandes objetivos de todos nós são os mesmos, embora procedamos de forma diferente para os tentar realizar.
– Esse processo de aprendizagem da língua chinesa é missão para vida…
J.P. – Para além da escrita chinesa ser lindíssima – é uma linguagem pictórica – também tem uma função extraordinária no desenvolvimento da China e na unidade nacional. O facto de haver uma escrita única foi um factor de coesão muito grande. A China é composta por etnias muito diferentes, povos bastante diferentes e regiões muito longe umas das outras. Gosto muito de caligrafia chinesa. Eu próprio tive lições mas nunca fui um calígrafo propriamente dito.
– Mesmo após esse período de dez anos deste lado do mundo, manteve hábitos de aprendizagem da língua, cultura e estudos chineses.
J.P. – Cheguei a fazer o sétimo nível de mandarim hoje, por ventura, estarei entre o quarto e o quinto nível. O sétimo nível implica a aprendizagem de cerca sete mil caracteres. Hoje já perdi muito. Vou acompanhando através da internet, leitura, contactando com as pessoas lá. Tenho tido uma boa relação com a comunidade chinesa em Portugal.
– Estudou e escreveu sobre Direito da China. A que conclusões chegou?
J.P. – O Direito antigo da China – que era bastante evoluído diga-se, designadamente a partir do código Tang que influenciou todos os outros a seguir – continha uma visão essencialmente sancionatória.
Depois da Revolução, o primeiro código penal da China aparece apenas em 1969 com a forte influência do Direito soviético. Tem mais que ver com a danosidade do que com questões de culpa. As questões de culpa têm uma relevância menor do que têm entre nós. Essa influência soviética ainda existe. A reforma que houve a partir de 1997 melhorou bastante o código. Mas ainda não existe uma presunção da inocência, embora exista o princípio da legalidade, o que já foi um passo extremamente importante.
A ideia que tenho é que se está a caminhar no sentido de dar maior presença no Direito Penal aos princípios do Estado de Direito. Ainda não se chegou lá, mas está-se a caminhar nesse sentido.
– Mas será Estado de Direito (rule of law) ou rule by law?
J.P. – Aquilo que se diz no Ocidente, designadamente por alguns sinólogos, é que na China não governa a lei, mas que se governasse através da lei, no sentido em que quando se quer uma determinada solução, cria-se essa solução através do Direito. Ou seja, o Direito não ganha autonomia. Para haver um Estado de Direito tal como nós o entendemos, a lei ganha autonomia em relação ao próprio legislador e depois tem que haver um sistema judiciário independente que o interprete. É evidente que isso ainda não é totalmente assim até porque há comités do Partido junto dos tribunais com poder de avocar determinados processos portanto a falha maior acontece aí.
Em termos de estrutura da lei há de facto uma melhoria significativa.
– Há esta visão por parte de vários observadores que salientam que os últimos anos, sob a liderança de Xi Jinping, têm sido marcados por um retrocesso ao nível e direitos, liberdades e garantias na China. Concorda?
J.P. – Sabe que na China há cinco gerações de liderança, mas houve três líderes no verdadeiro sentido. A liderança anterior de Hu Jintao e Wen Jiabao foi designada por Deng Xiaoping. A liderança de Deng Xiaoping subsistiu para além do tempo dele e subsistiu até ao fim da liderança de Hu Jintao e Wen Jiabao. O novo líder veio agora. O terceiro é este. Fala-se em guerras e guerrilhas dentro do Partido, mas não me parece que tenha sido isso o que aconteceu. O que me parece é que houve um consenso no sentido em que o mundo está numa mudança muito rápida e que a China precisaria de uma liderança mais forte para este período.
Mas repare, situações de maior repressão aconteceram anteriormente também. Lembro-me das campanhas contra a criminalidade nos anos 1990 e no século presente em que realmente havia períodos em que o poder apertava mais. Sempre que sentiam que havia alguns risco, cortaram o mal pela raiz. Isso tem sido seguido ao longo dos anos.
– O que é que mudou com as alterações constitucionais do ano passado refletidas no fim da limitação de mandatos para os cargos de presidente e vice-presidente da China, e com o papel designado para o Partido Comunista no corpo da Constituição?
J.P. – O papel do Partido já constava do preâmbulo da Constituição que vale tanto como o articulado do corpo da Constituição. Acho que em termos qualitativos não há alteração. Agora o fim do limite de mandatos, essa é a parte mais discutida. No tempo de Deng Xiaoping havia uma razão acrescida para isso. De facto, os líderes da altura não tinham a formação dos líderes de hoje. Não havia propriamente indivíduos como especialistas em Direito ou economia. Portanto havia a vontade de renovar o mais rapidamente as lideranças para encontrar gente preparada para lidar com os problemas da modernidade. Ainda assim isso pode gerar algumas situações em termos de disputa de poder. Dez anos é muito tempo e nós vimos o que aconteceu com Jiang Zemin que procurou ficar na Comissão Militar Central e isso gerou problemas sérios. Ninguém gosta de perder o poder. O Partido vai ter que lidar com essa questão. Estou convencido que há a intenção de esta liderança se manter para além dos 10 anos como é óbvio e terá a ver também com os tempos que se aproximam, que vão sendo evidenciados pela guerra comercial que está aí, as disputas no Mar do Sul da China. De facto, estamos num período de rivalidade estratégica acentuada e todas essas mudanças penso que têm essencialmente a ver com isso.
– Com essa centralização do poder em torno de Xi Jinping não haverá o risco de se perder capacidade para corrigir erros?
J.P. – Pode haver esse risco. Mas a sociedade chinesa mudou muito. Antigamente a classe média não era o que é hoje. Não tinha o mesmo tipo de formação e exigência que tem hoje. Por outro lado, estamos a assistir a um fenómeno que não é exclusivo da China. O sentimento nacionalista, e políticas mais autoritárias estão a surgir noutros países mesmo no seio da União Europeia e nos próprios Estados Unidos, o presidente gostaria de ter os mesmos poderes que algumas pessoas com quem gosta de interagir. Veja o que está a acontecer no Brasil.
– A China tem sido retratada em vários circuitos como procurando tornar-se numa uma espécie de “ditadura digital perfeita”, com a evolução do sistema de crédito social e expansão da utilização de big data e inteligência artificial. Em que pontos estamos a este nível?
J.P. – Esse é um risco sério da China e de outros países. Na China mais manifestamente por causa da criação desse sistema. Mas há a tentação que venha a acontecer também noutros sítios em nome do combate ao terrorismo e da segurança. É o “Admirável Mundo Novo”. E corremos o risco de alterar conceitos como o de privacidade. Aliás, hoje mesmo as camadas mais novas já fazem partilhas de coias que não passaria pela cabeça dos mais velhos. Hoje, de facto, há uma grande capacidade de controlo dos cidadãos e isso pode conduzir a situações complicadas em termos de proteção de direitos, liberdade e garantias.
– Como olha para o que está acontecer em torno da Huawei?
J.P. – Vejo isso na perspectiva em que os americanos percebem que o grande rival estratégico é a China. O grande desfaio não é a Rússia, a União Europeia. É a China. A tecnologia é um instrumento importante em termos de obtenção de informação. Os estados têm que se defender na perspectiva pura e simples da segurança nacional e não de guerra comercial. O estado português a esse respeito têm uma posição correta.
Portugal tem uma aliança com os Estados Unido da América e uma parceria estratégica com a China. Há alguma contradição no atual contexto de tensões crescentes entre Pequim e Washington?
A nossa parceria com a China é perfeitamente compatível com a assunção dos nossos compromissos no seio da NATO. Ainda não surgiu nenhum problema que nos leve a pensar de outra maneira.

José Carlos Matias 03.05.2019

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