“Há uma nova Lusofonia, onde não se fala só português e o chinês vai fazer parte”

por Arsenio Reis

O Festival This Is My City chega ao fim de mais uma edição no domingo, com a estreia em São Paulo, Brasil. O fundador Manuel Correia da Silva diz que o evento prova que Macau pode ser a ligação entre a China e os países de língua portuguesa. A Lusofonia já está a mudar, defende. E também se deve a Macau. 

– Qual é o balanço da última edição?

Manuel Correia da Silva – Foi o maior festival até hoje. Um festival como este deve ser sobre a experiência que as pessoas têm na cidade com aqueles artistas e conteúdo. Acho que foi consensual a mais valia que trouxemos. Temos muito por onde crescer.

– Têm conseguido envolver as várias comunidades que vivem em Macau, sobretudo a chinesa?

M.C.S. – Este ano pudemos comprovar isso. A maioria da audiência que encheu as Oficinas Navais era chinesa. Até agora, estávamos muito focados nas bandas portuguesas e decidimos que tínhamos de mudar, e passar a trazer as chinesas. Sente-se logo a reação. Da Lusofonia, de fora, do ocidente, vêm os convidados do lado da indústria, os palestrantes. Ao nível de bandas é para ser sempre da China. Não vale a pena trazer um agente português a Macau ouvir as bandas portuguesas? Isso já ele conhece. Tem de vir ver o que se passa deste lado, em Macau e na China. 

– É um evento que deixou de estar associado à comunidade portuguesa?

M.C.S. – Tivemos a surpresa de ter gente de Hong Kong, por exemplo, que temos de ser capazes de atrair. Podemos oferecer uma experiência que não existe lá, neste tipo de cidade, arquitetura e tempo que Macau ainda tem, mais lento. Queremos também a comunidade de Macau mais envolvida, incluindo a do próprio bairro, que temos necessariamente de trabalhar. Como mudámos sempre de espaço, não conseguimos estudar a zona. Este ano sentimos que convém ficarmos ali (nas Oficinas Navais) para trabalhar com o bairro e tentar que o This Is My City, que provou que está a crescer e chega a outras comunidades, consegue fazer parte do sítio onde acontece.

– Resultaram projetos novos?

M.C.S. – Foi outra surpresa. Há muitas coisas alinhadas. As pessoas não têm ideia do que se passa na China. Muitos dos convidados organizam festivais e querem os artistas chineses que participaram no This Is My City nesses festivais. É isso que queremos fazer: exportar artistas. E é assim que Macau passa a ter papel muito interessante: o de exportador da China. Através das ligações privilegiadas que tem, a eventos como o nosso, ao Brasil e Portugal, torna-se muito fácil. E o mesmo acontece ao contrário. O diretor do Beishan World Music Festival e do Beishan Jazz Festival de Zhuhai viu o Celeste Mariposa e já estamos a falar como é que se pode fazer uma versão do This Is My City mais alargada na cidade. Mas disse logo que não queria bandas chinesas porque já as tinha. Quer bandas portuguesas e lusófonas.

– Sentem que encontraram o vosso lugar: serem o pano de amostra do que se faz na China e na Lusofonia?

M.C.S. – Essa é a missão. 

– E a estreia em São Paulo?

M.C.S. – A banda chinesa Wu Tiao Ren é a cabeça de cartaz num programa com mais seis bandas brasileiras. Também fomos convidados para palestras: uma sobre a ligação do Brasil à Lusofonia, e a outra sobre festivais no mundo. Há representantes da América Latina, Europa, América do Norte e da China. E é engraçado porque a China vai estar representada por Macau, pelo This Is My City. É a prova do papel que podemos ter. 

– E tem sentido representarem a China?

M.C.S. – Se me perguntarem sobre a China não vou falar sobre o país todo porque não o conheço. Vou falar sobre esta China, a região do Delta do Rio das Pérolas. Temos de mostrar a outra China ao mundo, que não é a das notícias. É a China das pessoas que andam à nossa volta que são muito mais interessantes e parecidas connosco. Só há uma maneira de olhar para a ideia de a China se apropriar de Macau para fazer parte da Lusofonia, quando não é lusófona: sentido de oportunidade. E há duas formas de o usar: as vias comercial e política, e a cultural, que podemos explorar. Há uma palestra sobre a Lusofonia e há um chinês, há um concerto dedicado à Lusofonia e atuam os Wu Tiao Ren, que cantam em cantonês. Há uma nova Lusofonia, onde não se fala só português e o chinês vai fazer parte.

– Que desafios surgem com o projeto do Delta do Rio das Pérolas?

M.C.S. – Macau é muito graúdo em termos culturais, comparando com Zhuhai e mesmo com Shenzehn. Temos uma agenda cultural fantástica. Podemos discutir se gostamos ou não, mas há muita coisa a acontecer, muito investimento e tudo muito bem organizado. Em Zhuhai não se passa nada, o que quer dizer que está por fazer. Vivo lá e sei. E agora há uma ponte, e um comboio. Há cada vez mais gente jovem. A cidade tem mais de 30 universidades. As pessoas que já estão a tentar dinamizar Zhuhai estiveram no This Is My City e querem trabalhar com Macau. A integração na região passa primeiro por Zhuhai e a cultura tem um papel fulcral. Shenzhen igual. O nosso parceiro desta edição foi a Design Society, que tem uma atitude pró-Delta e foi por isso que nos recebeu. Não há ninguém de Macau a ir lá. Há muito por fazer.

– A integração vai implicar que Macau perca identidade?

M.C.S. – Uma coisa é certa: vai mudar. A integração vai-nos diluir mais uns nos outros. Mas para protegermos o que deve ser protegido – que ainda não sei bem o que é, essa identidade e essa diferença – temos de sair daqui para percebermos no que somos diferentes. É interessante falar com as pessoas de Zhuhai e de Hong Kong, e ver do que gostam: da arquitetura, da zona da cidade mais silenciosa, do ambiente mais familiar. Neste momento, estou muito mais interessado no que vamos ganhar do que no que vamos perder.

– Que vai ganhar Macau?

M.C.S. – Ainda não faço bem ideia, mas acho que vamos ser muito mais diversos e regionais, e vamos ser obrigados a competir. A competição vai permitir perceber mais rapidamente onde somos bons e diferentes para podermos ter um lugar no Delta. Uma coisa é certa: a Lusofonia é uma dessas diferenças. 

– A ideia de Macau como plataforma tornou-se um slogan. Está a cumprir esse papel? Macau é visto dessa forma?

M.C.S. – Não. Só nas reuniões oficiais do Governo. Mas começamos a ter esse papel quando organizamos iniciativas como a que fizemos no This Is My City, com a presença em Shenzhen e Zhuhai. O Governo faz um esforço, que é político, estratégico, e que faz parte de um plano da própria China. Essa é a missão deles. Se também acreditamos nesse papel, também temos de fazer alguma coisa. Não podemos esperar que o Governo faça tudo. 

– A Lusofonia é só vontade política ou existe?

M.C.S. – Existe, mas também tem de ser forçada. A língua portuguesa criou uma cultura de matriz portuguesa. O que se passa é que hoje é tudo muito mais globalizado. Há a necessidade de inventar um novo nome para essa comunidade que tem esta língua como matriz mas que começa a brincar com outras línguas e outros espaços geográficos, e já não está preocupada se é lusa. É os Wu Tiao Ren, que são de Cantão, e não falam inglês ou português. 

– Dizem que a vossa aposta deve ser mais em cidades de segundo e terceiro plano, em vez das grandes como Pequim que já estão esgotadas. De que cidades falam?

M.C.S. – Para já Shenzhen e Zhuhai. No futuro, devíamos explorar Dalian, uma cidade portuária, bastante desenvolvida, com uma agenda cultural interessante, enorme. Pequim, contradizendo-me, é importante porque há muitas bandas e agentes a vir dali. Mas agora temos de nos focar no Delta, e mais neste quadrado: Macau, Zhuhai, Hong Kong, Shenzhen.

– O Governo tem-vos apoiado?

M.C.S. – Apoia e desde sempre. E só é possível pelo apoio que nos dá. Gostava que houvesse mais cumplicidade e acho que devia haver mais apoio. Merecemos. Mas o saldo é positivo porque temos total liberdade na curadoria e na produção.

– Alguma vez, nestes 12 anos, houve condicionamentos à liberdade artística?

M.C.S. – Não. Só não posso fazer barulho depois das 10, o que cumprimos com todo o rigor.

– O nome do festival é This Is My City. O que trouxeram à cidade?

M.C.S. – Cada vez que fazemos um This Is My City sinto que estamos a construir com a cidade, a usar o espaço público, o erário público, portanto estás a jogar com as peças da cidade. Ter a liberdade de poder decidir é um empoderamento brutal, significa que a cidade é tua. Também é um grito de liberdade. Apesar de estarmos no estrangeiro, isto é China, temos a possibilidade de usar a cidade. 

– Como seria o festival ideal daqui a 10 anos?

M.C.S. – Podia ter mais expressão nas cidades da Lusofonia, por exemplo africanas. Há uma grande presença chinesa em África mas é muito política e económica. Culturalmente seria fantástico ter essa presença e Macau pode ter esse papel. 

‭ ‬Catarina Brites Soares 07.12.2018

FOTOS: Gonçalo Lobo Pinheiro

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