“Propus-me fazer coisas importantes na área da fotografia”

por Arsenio Reis

É assim que João Miguel Barros resume o programa traçado para próxima década. Aos 61 anos, o jurista entrou pela porta grande da fotografia com a exposição “Photo-Metragens” no Museu Coleção Berardo, em Lisboa. Visitada por mais de 80 mil pessoas, a mostra encerrou há dias e no próximo ano segue para Macau.

– A exposição “Photo-Metragens” é feita de pequenas narrativas visuais, com texto a acompanhá-las. Interessa-lhe o carácter narrativo da fotografia?
João Miguel Barros – Tenho feito uma evolução. Ao princípio, talvez por autodefesa, assumi – e continuo convicto de que isso acaba por ser importante – que uma imagem vale por si, não precisa de estar integrada num conjunto mais alargado de imagens, com ou sem texto. Tenho vindo a tentar concentrar o trabalho na ideia de contar histórias com o mínimo de imagens possível, digamos assim. A Photo-Metragens acaba por ser fruto disso, fruto de várias circunstâncias. Em primeiro lugar, a forma como consegui resolver a adequação do trabalho àquele espaço [uma das galerias do Museu Coleção Berardo[…]Como a série das marés, que acaba por ter uma história engraçada, porque comecei por fazer aquela sequência de nove fotografias com as imagens das marés e depois achei que podia ter piada ir até ao mesmo sítio e fazer um filme. Tudo isto, como todos os capítulos da Photo-Metragens, começou nas imagens e as imagens motivaram os textos. No caso concreto das marés, o texto motivou o vídeo, aquele curto diálogo da criança que diz ao avô “- Quantas marés cabem neste mar?” e o avô responde, com a sabedoria dos velhos, “- Todas aquelas que conseguires contar.” A partir daí lembrei-me de ir tentar contar as marés e fui ao mesmo sítio, estive mais de uma hora a filmar a água. Como gosto da escrita e comecei a minha formação cultural, ainda adolescente, pela escrita e não pela imagem, neste primeiro projeto a sério não quis deixar de ensaiar um bocadinho a escrita como complemento, mas um complemento com autonomia. A própria exposição é inspirada na lógica do livro, com pequenos contos lá dentro.
– Talvez por causa desses textos, quem visita a exposição fica com a sensação de que há uma mistura de histórias alheias, de personagens que se cruzam no caminho do fotógrafo, com as memórias do próprio fotógrafo.
J.M.B. – Não são propriamente memórias, porque são tudo histórias ficcionadas. Podemos criar ficção a partir das memórias. No meu caso tenho ali muito retratada a relação entre neto e avô. Talvez como homenagem ao meu avô, que morreu há muito. Tenho 60 anos e chega aquela idade em que nós olhamos retroactivamente e começamos a pensar nalgumas coisas que fizemos menos bem ou fizemos mal. Tenho um certo sentimento de pena de não ter compreendido o meu avô, que era um libertário, um homem da cultura, que aliás nasceu no dia 25 de Abril, que foi a grande prenda que lhe puderam dar. Em janeiro de 1974 estava preso em Caxias só porque defendia a liberdade. Isto para dizer que esta referência do meu avô, uma pessoa que desapareceu quando eu era adolescente sem o ter percebido verdadeiramente bem, acompanhou-me ao longo da vida. Acho que qualquer relação avô-neto, qualquer que ela seja, é sempre uma dialéctica de curiosidade e de sabedoria. Penso que aquele diálogo das marés é um pouco a síntese dessa sabedoria muito simples. Todos os textos foram escritos a partir das imagens, às tantas senti a necessidade de escrever qualquer coisa e fiz os textos assim um bocadinho de rajada, da inspiração do momento. Há quem digam que são textos tristes, melancólicos, pessimistas.
– Como refere no texto de apresentação da exposição, ela conta histórias a partir de quase nada, contrariando a ideia de que só os momentos decisivos merecem a dignidade de se contarem. Que relação tem com esses nadas que nos rodeiam, coisas que vemos mas não vemos?
J.M.B. – Isso tem muito a ver com a reflexão que a gente faz da fotografia. Nós já não conseguimos criar nada de novo, os momentos heroicos do Cartier-Bresson, do Capa, dessa gente que andou por este mundo e foi verdadeiramente testemunha privilegiada de épocas e de momentos importantíssimos da nossa história com uma máquina fotográfica na mão, que era um objecto quase raro, que pouca gente usava. Esses sim tiveram a possibilidade de fixar momentos decisivos. Todos nós, nos tempos que correm e com os telefones, ou andamos todos a tentar fixar momentos decisivos ou momentos banais. Sinto um bocadinho que esta procura dos momentos muito decisivos também nos obriga a ir procurar as coisas simples que normalmente não vemos e que estão ao nosso lado.
– Depois destes meses de exposição, qual é a sensação que fica?
J.M.B. – Acho que foi uma aposta ganha, mas é paradoxal. Sei por reações do museu que milhares de pessoas visitaram a exposição e que tem havido críticas muitíssimo favoráveis. Por outro lado, faço uma exposição em Portugal e não há um único texto, uma única crítica nos meios convencionais, jornais, etc.. Há aqui uma clonagem do espaço cultural que impede que outras pessoas se possam afirmar. Eu devo ser visto um pouco como um extraterrestre no mundo artístico, porque provavelmente não se perdoa que uma pessoa como eu, que não tenha pelo menos pedigree conhecido como artista a carregar as pedras desde os 20 anos até aos 60 para fazer uma exposição, possa entrar diretamente para o Museu Berardo e fazer uma exposição que era para acabar em junho e que, devido a conjunto de circunstâncias, nomeadamente de afluência, decidiram prolongar até agosto. Há aqui um conjunto de sinais que não sei interpretar muito bem, mas estou francamente contente e muito motivado para poder continuar este trabalho. Propus-me a mim próprio durante dez anos fazer coisas que venham a ser importantes na área da fotografia. Tenho vários projetos em mãos que não passam só pela minha fotografia mas pela curadoria, alguns que já estão a ser desenvolvidos, como uma exposição de pessoas de Macau em Lisboa sobre a qual a seu tempo falaremos. Queria, durante estes dez anos que tenho à frente, poder fazer coisas importantes, independentemente da receptividade que isso tenha nos meios de comunicação social.
– Há pouco falava da importância do espaço. Do ponto de vista da visibilidade e da afluência à exposição, qual foi a importância de fazê-la no Museu Coleção Berardo?
J.M.B. – É evidente que o Museu Berardo é um dos museus mais prestigiados de arte contemporânea que temos em Portugal, e portanto ajudou muito o fluxo normal de pessoas que vai visitar o museu para o sucesso da exposição, isso é inegável. Se esta exposição tivesse estado numa galeria mais desconhecida, então teria passado completamente despercebida.
– Depois de terminada a exposição, o que vai ser feito desta coleção?
J.M.B. – Em princípio deve ir a Macau, neste momento estou a falar com o Instituto Cultural para que 90 por cento da exposição vá a Macau na primavera do ano que vem. Depois disso acho que se esgota, pelo menos esta edição 2018, porque quanto muito o que gostaria de fazer era a todos os dois anos um novo projeto de Photo-Metragens, ‘short stories’ com imagens e texto. Entretanto tenho vindo a desenvolver outro projeto, Blood, Sweat and Tears, e que nasceu justamente de um dos capítulos da Photo-Metragens, que são as imagens do combate de boxe que me levaram ao Gana. Tenho um conjunto de material significativo que provavelmente dará para publicar um livro com este trabalho de homenagem a este lutador ganês, o Emmanuel Danso, que perdeu o combate em Macau e que me impressionou muito pelo modo como afincadamente e com grande dignidade treina em Acra, de manhã e à tarde, todos os dias. Provavelmente ainda vou voltar ao Gana mais uma vez para fazer mais uma série de fotografias. Gostava de completar este projeto que é realmente uma narrativa única.
– Há fotografias desta série na colectiva que está na Casa Garden, mas o plano é posteriormente fazer uma exposição individual com estes trabalhos?
J.M.B. – Quero fazer uma exposição grande, centrada no trabalho completo. As fotografias do Gana ainda não foram expostas em lado nenhum, só divulguei algumas no Instagram.
– A ideia será ter essa exposição em Macau?
J.M.B. – Eventualmente, se arranjar um sítio bom para fazer a exposição, mas se for uma galeria muito pequena não dá. Uma das minhas opções tem sido fazer fotografias de grande dimensão, preciso da escala.
– Voltando à exposição Photo-Metragens e à sua ida a Macau, já há uma data concreta?
J.M.B. – O Instituto Cultural deu-me como data final de março ou princípio de abril [de 2019] e neste momento estamos a orçamentar, a ver como se vai fazer. À partida o convite é para fazer a exposição no Navy Yard, o espaço das Oficinas Navais. É um espaço bom e tem dimensão suficiente.
– Já que falamos de Macau, que lugar têm Macau e a China na sua fotografia?
J.M.B. – Às vezes dou comigo a pensar porque é que não faço mais fotografias em Macau. Tenho alguma dificuldade em fazer fotografias em sítios que conheço, porque não consigo ver nada. Agora, Macau faz parte do oriente e todos nós que passamos por Macau acabamos sempre por ter uma influência poderosa pelo modo como a cultura oriental se manifesta. As influências diria que são de outra ordem, às vezes mais do modo como estruturamos a cabeça e olhamos as coisas, do que das fotografias que se tira ou dos textos que se escreve. Nunca consegui encontrar grande motivação [para fotografar Macau], às vezes saía de casa com a máquina e voltava com ela vazia.
– Gostava de voltar ao que referiu no começo desta conversa: o facto de não ter um percurso artístico conhecido dos 20 aos 60 anos. Também em Macau, a atividade pela qual as pessoas mais o conhecem é a atividade jurídica. Como é que lida com essa situação de aos 60 anos ter visibilidade com esta exposição e ter decidido para os próximos dez anos fazer algo completamente diferente, dedicando-se à fotografia?
J.M.B. – Eu não sou propriamente aquilo a que se pode chamar um novo rico em termos culturais, porque tenho preocupações culturais há muitos anos, desde a adolescência. Basta pensar na revista SEMA que fiz quando tinhas uns 18 anos e na ligação que tive sempre a coisas culturais. Sempre tive iniciativas nessa área, de curadoria já tinha feito um projeto importante, que foi o livro sobre o sistema prisional, um livro de fotografias que é muito interessante. Mas não tenho nenhum problema em relação a isso, não sou o tipo de pessoa que andou com a cabeça completamente assente em livros de Direito e que um dia despertou e resolveu tirar fotografias. Tenho uma preocupação cultural, estética, de espectador, de consumidor de cultura desde sempre. Diria que provavelmente nunca tive foi a coragem ou a possibilidade de dizer ‘a partir de agora também eu quero ser protagonista, entre aspas, no sentido de fazer trabalho, acho que já tenho um bocadinho o direito de o fazer também. Tenho pena de não ter tido a coragem de começar mais cedo. Estive sempre do lado de quem olhava, de quem lia, mas acho que já mereço também estar do lado de quem faz.

Hélder Beja 31.08.2018

Em Lisboa

Pode também interessar

Contate-nos

Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

Plataforma Studio

Newsletter

Subscreva a Newsletter Plataforma para se manter a par de tudo!