“O Governo central não está preocupado com Macau”

por Arsenio Reis

Posições tomadas pela Comissão de Assuntos Eleitorais da Assembleia Legislativa, as alterações à Lei do Hino Nacional, a proibição da entrada de jornalistas, ativistas e políticos, o caso do deputado Sulu Sou são exemplos que têm levado académicos, juristas e constitucionalistas a alertar para o atropelo do princípio Um País, Dois Sistemas e da autonomia de Macau acordada por Pequim e Portugal – na Declaração Conjunta que vigora até 2049 – e prevista na Lei Básica. O PLATAFORMA entrevistou Ieong Wan Chong, que dedicou a vida ao estudo das normas que estão na base da RAEM, para perceber se há motivos para alarme. O académico desvaloriza e defende que Macau, continuando ou não como região administrativa especial, vai ter um papel. E isso é que importa.

– Considera que o princípio Um País, Dois Sistemas e a Lei Básica têm sido respeitados?
Ieong Wan Chong – Nas últimas duas décadas, as mudanças em Macau foram enormes. Toda gente vê isso. Há muitos fatores a ter em conta: a estabilidade económica, o ambiente harmonioso e inclusivo. São tudo provas do desenvolvimento da sociedade. Macau sofreu grandes desenvolvimentos desde a transferência de soberania.
– Acha que o princípio “Um País, Dois Sistemas” vai vigorar depois de 2049, quando termina a Declaração Conjunta entre Portugal e a China?
I.W.C. – Há pessoas que já começam a discutir essas matérias, mas 30 anos não é um período de tempo curto em termos de desenvolvimento de uma sociedade. Se a Lei Básica vai permanecer depois de 2049 e se o sistema político vai mudar são assuntos que têm de se estudar. Basicamente, a implementação do princípio Um País, Dois Sistemas tem sido um sucesso. Sabemos claramente qual será o papel de Macau nos próximos 20 anos. Não nos compete a nós prever o que acontecerá depois. Acho que nem mesmo os líderes do Governo central sabem claramente ou tomaram decisões sobre o que acontecerá depois. Uma coisa que estou certo é que, se Macau mantiver a estabilidade e prosperidade, pode prestar uma grande contribuição ao Continente depois destes 50 anos, e que o papel de Macau continuará a ser claro, independentemente de continuar a ser uma região administrativa especial ou de o princípio Um País, Dois Sistemas continuar em vigor. Acho que Macau pode esperar maior desenvolvimento depois de 2049. Não precisamos de prever o que vai acontecer. Não somos adivinhos
– Retomo a pergunta. Que balanço faz da implementação da Lei Básica e do princípio Um País, Dois Sistemas?
I.W.C. – Não há como contestar o sucesso do desenvolvimento de Macau. A nossa economia cresceu seis a sete vezes. Macau é a segunda economia com o PIB per capita mais elevado do mundo. É provável que passe para primeiro lugar em 2020.
– A situação política e social acompanhou o desenvolvimento económico?
I.W.C. – Macau alcançou um claro desenvolvimento ao nível económico, mas também legal e político. Uma das coisas que gostaria de enfatizar é o entendimento de Macau sobre o princípio Um País, Dois Sistemas. O Governo e os residentes têm um profundo entendimento do princípio e é por isso que temos uma melhor relação com o Governo central, e que não tem havido confrontos desnecessários como os que têm lugar em Hong Kong. Há uns dias Andy Chan [independentista, líder do Partido Nacional de Hong Kong] fez um discurso em Hong Kong. Nos últimos 20 anos, nunca assistimos a um incidente como este em Macau, o que mostra que temos um entendimento mais profundo do princípio Um País, Dois Sistemas. É por isso que nunca vimos nenhum incidente que tivesse como objetivo desafiar a legitimidade do Governo central ou do Governo de Macau.
– Há quem defenda que se sente que o princípio Um País, Dois Sistemas está em causa. Falo por exemplo do impedimento da entrada de políticos e jornalistas de Hong Kong em Macau. Há motivos para alarme?
I.W.C. – Nunca me preocupei. Mesmo que alguém queira desafiar a autoridade de um princípio Um País, Dois Sistemas, temos cerca 600 mil habitantes, seria ingénuo pensar que toda gente pode ter a mesma opinião. A diversidade de opinião e a liberdade de expressão são respeitados em Macau, e são essência do princípio Um País, Dois Sistemas, que prevê que se respeite valores comuns e ao mesmo tempo a diferença. É importante que se reduzam as partes más do sistema e se preservem as boas. Mesmo no sistema do Continente, que é socialista com características chinesas, tem-se assistido a um grande desenvolvimento, mas sabemos que continua a ser um país em desenvolvimento com bastantes questões por resolver, e que há metas e objetivos por alcançar. Mas é apenas um processo transitório. O sistema já alcançou um tal desenvolvimento, que já é um milagre. Os media têm um papel de guia na sociedade. Os meios de comunicação têm de ser diversos, mas o mais importante é ser racional. Temos de observar a sociedade com rigor e entender qual é a tendência.
– Pode ser mais claro?
I.W.C. – Em Hong Kong, há alguns jovens, incluindo Andy Chan, que são Hong Kongers. Ainda era muito novo quando Hong Kong se tornou uma região especial da China, em 1997. A questão é: como é que este jovem ousou ir tão longe? Também temos de olhar para os aspetos culturais, e nesta área, além de democracia, direitos humanos e Estado de Direito, Macau também preserva valores como o “Amor ao País, Amor a Macau” e “Um País, Dois Sistemas”. A Lei Básica foi programada em 1993, e a Declaração Conjunta foi assinada em 1987. Desde essa altura que a população percebeu que era um processo histórico e que iria voltar a fazer parte da China, em 1999. A população preparou-se de forma a que a harmonia permanecesse e a transição fosse pacífica. A população de Macau é patriótica. Macau faz parte da população da República Popular da China. Não deve haver dúvidas sobre a ligação à República Popular da China e aos cinco mil anos de História da Nação chinesa. Diria que entre os residentes de Macau quase que não há controvérsia no que diz respeito ao patriotismo, ao amor ao país. Apesar das reservas de algumas pessoas, a maioria da população tem amor ao País e a Macau.
– O que acha de…
I.W.C. – Espere. Queria mencionar uma outra questão, porque falou das pessoas de Hong Kong que foram impedidas de entrar em Macau. Isso aconteceu porque essas pessoas são conhecidas pelas suas posições. Quando estavam no ferry, já estavam a mostrar banners e gritavam slogans. Era claro que viriam a Macau para mostrar a sua oposição e foi por isso que foram barradas. Concordo que podemos ter outra abordagem, que passa por deixá-los entrar. Se tiverem comportamentos radicais ou que violarem a lei, as autoridades podem tomar atitudes de acordo com a lei.
– Referiu que havia partes negativas no sistema que podiam ser melhorados.
I.W.C. – Macau é uma cidade internacional. Mesmo antes da transferência, tínhamos um contacto fácil com o resto do mundo além dos países de língua portuguesa. Sempre fizemos parte de entidades internacionais. O sistema de Macau é diferente dos sistemas em Portugal, nos Estados Unidos da Américas e do sistema do Continente. Porque é que a Lei Básica enfatiza o sistema vigente? Para que a transição seja suave. Mas, honestamente falando, o sistema capitalista de Macau ainda não está no nível máximo. Disso tenho a certeza. Manter o sistema capitalista como prevê o princípio Um País, Dois Sistemas não é simplesmente mantê-lo sem questionar ou segui-lo cegamente, certo?
– Sente que a relação entre Pequim e as regiões especiais, Hong Kong e Macau, mudou depois do Movimento dos Guarda-Chuvas, que teve lugar em Hong Kong em 2014?
I.W.C. – Diria que não mudou e que é quase impossível que mude. Hong Kong é uma cidade internacional que é simultaneamente um polo em muitas áreas: é um centro de turismo, financeiro, de negócios, de conferências e convenções, é um porto marítimo. Antes da transferência de Hong Kong, exceto durante a Revolução Cultural, nunca houve um movimento como este. O movimento desafiou o Governo, pretendia alterar o sistema político implementado, estava claramente em contradição com o interesse de Hong Kong e perturbou a comunicação com o resto do mundo. Recentemente, vimos que muitos dos participantes estão a ser julgados pela Justiça. Mas acho que o Governo de Hong Kong também teve culpa. Os organizadores do movimento tinham o objetivo claro de alterar o sistema político de Hong Kong. Este ponto já era claro e é cada vez mais. Mas, lamentavelmente, o Governo de Hong Kong demorou a responder e não tomou medidas suficientemente efetivas. É por isso que o movimento durou tanto tempo e foi tão destrutivo. É difícil o Governo de Hong Kong justificar-se. Tem alguma ou muitas responsabilidades. Olhando para a situação atual, é praticamente impossível que em Macau surgisse um movimento como este. Acho que a relação entre o Governo central e Macau não mudou por causa da implementação correta do princípio Um País, Dois Sistemas. O Governo central não está preocupado com Macau.
– Num seminário em que participou, defendeu que devia haver dois candidatos para Chefe do Executivo.
I.W.C. – Há três momentos políticos importantes em Macau: as eleições para Assembleia Legislativa, para o Chefe do Executivo e dos delegados de Macau para a Assembleia Popular Nacional. Em geral, as eleições para o Chefe do Executivo têm sido um sucesso. Mas na segunda, na terceira e na quarta eleições houve uma imperfeição porque houve apenas um candidato. É uma grande limitação. É importante que haja outra pessoa para competir, mesmo que o candidato seja brilhante. As eleições para Chefe do Executivo é um evento a que toda gente presta atenção porque são um indicador da democracia. Os candidatos que não ganham as eleições não são perdedores. Todos estão a contribuir.
– Quem é o melhor candidato a Chefe do Executivo nas próximas eleições?
I.W.C. – Acho que não é adequado pronunciar-me porque ainda ninguém avançou com candidaturas. Acredito que há condições para que haja mais do que um candidato que espero que concorra nas próximas eleições.
– Já se fala em alguns nomes, como o dos secretários Wong Sio Chack e Lionel Leong, e o presidente da Assembleia Legislativa, Ho Iat Seng. Há algum destes nomes que considere estar em melhores condições para desempenhar o cargo?
I.W.C. – Todos têm possibilidades.

Catarina Brites Soares 24.08.2018

Pode também interessar

Contate-nos

Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

Plataforma Studio

Newsletter

Subscreva a Newsletter Plataforma para se manter a par de tudo!