Gramado, uma mistura de Europa e América

por Arsenio Reis

Churrasco ao ar livre, o maior conjunto de canyons da América do Sul, arquitetura, sotaque e costumes europeus e uma cidade onde se celebra o Natal todos os dias. A serra Gaúcha é tudo isto e muito mais. Uma região do Rio Grande do Sul que espelha a autenticidade e a diversidade do país, mesmo que algumas paisagens pareçam remeter para outros continentes.

Marcelo Sartori é o brasileiro típico. Perdão, Marcelo. Marcelo é o gaúcho típico, típico gaúcho da serra. Barba farta, corpulento, traje tradicional – botas, calças, camisa, lenço, chapéu e guaiaca, cinto de couro com pequenos bolsos para guardar os utensílios, para guardar a faca. Faca gaúcha, devidamente certificada, para o que der e vier e, sobretudo, para o churrasco.

É isso que faz agora, é o que faz todos os sábados, no Parador Casa da Montanha, em Cambará do Sul, eco-village do qual é gerente e o assador de serviço. Na época das experiências esta é experiência gaúcha por excelência, se bem que Marcelo garanta não se tratar de um pacote para hóspede instagramer. É a essência da casa, da terra. “Continuo fazendo isto com amigos e família.” Tradição que vem dos tropeiros, gaúchos que se dedicavam à procriação e venda de gado. “Os homens pegavam num pedaço de carne, geralmente costela, e colocavam num espeto feito de madeira. A peça era fincada no chão e ficava assando lentamente distante do fogo. Quando voltavam estava pronta.” Há quem diga que vem ainda mais de trás, dos índios. Tempera-se com sal grosso, o fogo em brasa, e por ali fica durante algumas horas. Acompanha com maionese caseira, feijão tropeiro, mandioca e, é claro, boa disposição, piadas e aforismos ateados à roda do fogo: “O Cristo Rei pode ser carioca, mas a melhor carne do mundo é gaúcha.”

O dia vai longo, já choveu, já fez sol, estamos rodeados de natureza por todos os lados, um território abençoado por Deus e bonito por natureza, como escreveu e cantou Jorge Ben, mas não necessariamente tropical. Onde no Rio há violão aqui há acordeão, mais folclore do que samba, chimarrão no lugar do chope, um Brasil mais rude, mais macho: “Enquanto no resto do país os brasileiros ficam deitados na rede nós trabalhamos”, brinca Marcelo. Guerras internas, normais num país com esta dimensão, não fosse o Rio Grande do Sul um dos estados-limite (faz fronteira com a Argentina e o Uruguai) e dos que têm o PIB mais elevado, o quarto entre 26. Assimetria rima com Brasil, já se sabe, o processo de impeachment ainda está fresco, discute-se política durante uns momentos, mas rapidamente regressa a conversa leve. “Sabia que o Papai Noel é gaúcho?» – pergunta alguém. O Marcelo fez de Papai Noel lá em Gramado durante muitos anos.”

Não é piada. A pequena cidade de Gramado, a cerca de cem quilómetros de distância, está para o Natal como o Rio está para o Carnaval. Um dos destinos mais procurados pelos brasileiros, várias vezes classificado como dos mais românticos do mundo e muitos outros chapéus coloridos com que a internet gosta de adornar. Foi por Gramado que viemos, mas já lá vamos. Agora caiu a noite e está na hora de entrar no restaurante para jantar. Sim, o churrasco foi só o aperitivo. Lá fora, onde se diz que de vez em quando se avista um ou outro veado campeiro, não há a mais pequena luz. “Aqui tudo desliga, sobretudo os hóspedes”, garante Marcelo, que se despede para ir arrumar o que resta do churrasco, “até porque alguém tem de trabalhar, não é como dizem os?” Oh, oh, oh.

“Parece que estamos em África. Só faltam os elefantes e os crocodilos”, diz Leonardo, o fotógrafo, desde o terraço do hotel, já de manhã. Somos todos filhos das comparações, sobretudo quando em viagem. Se há vários locais do Brasil que não parecem o Brasil, há sempre um Brasil que se parece com África, neste caso a paisagem – um pequeno rio lá em baixo, Camarinha, uma mata de araucárias, mas também o espírito da casa, cabanas com telhados de palha inspiradas nos luxuosos lodges africanos. Algumas com jacuzzi e lareira.

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Onde estamos?

Onde estamos exatamente? – perguntamo-nos mais do que uma vez. «Se vier pela RS-020, siga o asfalto e as placas em direção a Cambará do Sul, evitando as estradas de terra indicadas pelo GPS. De Cambará do Sul, siga até o Parador pela RS-427. São apenas oito quilómetros de estrada de terra, bem sinalizados e em boas condições. Se vier pela serra do Faxinal/SC (rota indicada somente para veículos 4×4), siga sempre pela RS-427 até chegar ao pórtico de acesso ao Parador Casa da Montanha.» Ajuda? Talvez seja melhor um enquadramento geográfico. Estamos entre Cambará do Sul e o canyon Itaimbezinho, no Parque Nacional dos Aparados da Serra, unidade de conservação de proteção da natureza localizada na Serra Geral, na fronteira entre os estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. E agora? Talvez ainda não seja suficiente.

Mais do que estarmos no fim do mundo, que não estamos, ou perdidos, que hoje em dia (in)felizmente nunca se está perdido, fica a sensação de que estamos longe de tudo, até pela quase ausência de turistas. O mundo parece ainda não ter descoberto esta zona do país. “Nem os próprios brasileiros”, diz-nos um casal com quem subimos ao canyon de Fortaleza, a poucos quilómetros do hotel. Ambos com sangue europeu, prestes a embarcar para o Velho Continente em lua-de-mel. “A gente tem sempre vontade de ir para fora, ou para outros estados mais distantes, mas há tanto para ver aqui ao lado.” Onde é que já ouvimos esta conversa?

Num país com tantos atrativos nem sempre é fácil vender um destino, mesmo que esse destino seja o maior conjunto de canyons da América do Sul. Não, não há elefantes nem crocodilos, nem os mil e um animais exóticos e aura transcendente da Amazónia, mas a paisagem impressiona. Convenhamos que de início nem impressiona assim tanto, é uma caminhada interessante, sim, mas sem ser deslumbrante, até que chegados aos mil metros de altitude somos obrigados a suster respiração. Vales profundos, escavados pelo leito do rio, em V, às vezes tão finos que parecem ter sido aparados (daí o nome do parque) por uma lâmina, como se o criador se tivesse cortado a fazer a barba ou o chão aberto a boca com falta de ar. “Só mesmo Deus para fazer uma coisa destas”, ouve-se alguém comentar. São quase meia centena de canyons ao longo mais de duzentos quilómetros.

Deus ou a natureza, essa coisa divina, o certo é que já lá vão cerca de 130 milhões de anos. O melhor mesmo é ter os pés bem assentes na terra e cuidado extra com o vento e as selfies, pois não há barreiras de proteção. Isso e ouvir as explicações do guia. “Tudo isto é resultado de uma fragmentação da América do Sul e de África, continentes que estavam juntos. Foi um dos maiores eventos geológicos que aconteceram no planeta. A grande fratura deu origem ao que é hoje o oceano Atlântico e fraturas secundárias aos canyons.”

Perante um cenário destes o normal é querer chegar ao topo, mas é lá em baixo, nos vales, nos rios, nas encostas, que estão alguns dos maiores tesouros. A vegetação é exuberante, fruto da humidade e acidez do solo, com espécies remanescentes da Mata Atlântica, enquanto na parte alta aparecem os pinheiros de araucária, árvore-símbolo da região. Há pequenos e inofensivos cursos de água que acabam em grandes quedas, cachoeiras, trilhos para fazer a pé, de bicicleta, de todo-o-terreno e a cavalo, que nem um verdadeiro gaúcho. Ou de helicóptero. Basta reservar com alguma antecedência no hotel que eles tratam de tudo. Só não prometem piloto com traje típico.

Gramado, por fim

“O final de uma história deve ser, simultaneamente, surpreendente e inevitável.” É uma daquelas frases (roubada ao filme Dentro de Casa, de Francois Ozon) guardadas no caderno de notas para usar em momentos como este. Por mais que saibamos que o Brasil também é isto, que a serra Gaúcha é isto, um filme simultaneamente, surpreendente e inevitável, é difícil conter o espanto. Gramado, cidade natal; Gramado cidade alemã: Gramado cidade do chocolate; Gramado cidade/parque temático: Gramado cidade que parece retirada de um filme. Um filme descartável, de domingo à tarde, dirão alguns. Tristes das vidas que não têm filmes de domingo à tarde para contar.

Se a arquitetura europeia, fruto de uma forte colonização alemã e italiana – são muitas as terras no Sul do Brasil com arquitetura, gastronomia costumes do Velho Continente – já lhe daria uma aura especial, a forma como decidiu fazer do turismo o seu ganha-pão tornaram-na um caso único. De estudo. A Festuris Gramado – Feira Internacional de Turismo, considerada a mais efetiva feira de negócios turísticos da América Latina e a segunda maior em tamanho, é a prova da importância que tem no setor.

A aposta maior é, contudo o Natal. Natal, Natal, Natal, a expressão repete-se até à exaustão. Há pais-natais, mães-natais, duendes, renas, gnomos, árvores e luzes espalhadas por toda a cidade, em cada praça, em cada fachada, o ano todo. Sim, a festa maior é agora, com concertos, paradas, peças de teatro, desfiles, fogo-de-artifício e mercados todos os dias, a toda a hora, mas não é só agora.

Natal sempre

Se há sítio em que Natal é quando o homem quiser é mesmo aqui. Têm, inclusive, um parque (Aldeia do Papai Noel) aberto de janeiro a dezembro. A «moradia oficial do Papai Noel na América do Sul», garantem, ele que todos os dias ali está para dar abraços. Tem uma casa ao melhor estilo bávaro (de 1940) com pinheiros alemães centenários, neve artificial e cães são-bernardo à porta. Quem não gostar deste carnaval natalício o melhor mesmo é ir sambar para outra freguesia.

Uma aposta que já leva cerca de três décadas e foi tendo ramificações ao longo dos últimos anos, com a abertura de vários parques temáticos, tornando a cidade um dos destinos mais procurados do Brasil, com mais de seis milhões de visitantes por ano – para uma população de pouco mais de 35 mil pessoas. Tudo parece possível, normal. Um parque de neve, coberto, com 16 mil metros quadrados onde se recria um ambiente alpino e se pode fazer esqui e snowboard?

Eles têm, desde 2013, chama-se Snowland. Um museu de cera? Também, o Museu de Cera Dreamland, o primeiro da América Latina. Um salão de automóveis de alta cilindrada, incluindo Ferraris e Lamborghinis? Está cá, naturalmente: Super Carros Gramado. E ainda o Hollywood Dream Cars ou o Harley Motor Show. Podemos continuar, que a lista é quase infindável.

Exagero? “Eu gosto”, confessa Adriana, paulistana, dois filhos e um saco de chocolates na mão, à saída da Fábrica de Chocolates Prawer, uma das mais antigas do país. “Vir a Gramado é como ir à Disney, à Europa, a Bariloche e à Lapónia sem sair do Brasil”, comenta. A cidade argentina de Bariloche é conhecida pelos chocolates artesanais.

Também existe um reino do chocolate, naturalmente – com esculturas gigantes feitas de cacau – se bem que neste caso a relação seja tudo menos forçada, uma vez que existe uma grande tradição local. Na Avenida Borges de Medeiros, uma das artérias principais, há lojas quase porta sim, porta sim. A mesma rua onde fica o novo Museu do Festival de Cinema de Gramado, inaugurado em 2016. Também esta relação não nasceu com o turismo, apesar de ter sido feito a pensar nos visitantes. «A trajetória do Festival de Cinema de Gramado acompanhou todas as fases do cinema nacional. Se olharmos para a sua história podemos saber como foi o nosso Brasil e o nosso cinema nos últimos 40 anos.» Palavras de Fernando Meirelles, realizador de filmes como Cidade de Deus ou Ensaio sobre a Cegueira. Neste ano cumpriu-se a 45ª edição.

A poucos metros de distância mais uma porta que vale a pena abrir, a loja das facas Serra Grande. Facas gaúchas, feitas à mão. Uma empresa centenária e uma tradição que os jovens Everton e Myra, netos dos fundadores, fazem questão de ajudar a preservar. “Gaúcho da serra que é gaúcho da serra tem de ter uma», dizem, com um sorriso. «Seja para o churrasco ou para abrir os presentes de Natal.” Uma faca nem sempre é apenas uma faca. Às vezes é cultura. 

Texto: João Ferreira Oliveira, fotografia: Leonardo Negrão/Global Imagens  | VOLTA AO MUNDO 24.08.2018

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